quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Água pra lavar lágrimas

Por Bruno Brandi Lichacovski

A gota, era só uma gota, que um dia ascendeu aos céus, nascida do vapor, do frio e do calor, forjada nas nuvens, tecida nas alturas. Ela escorria por entre montes acinzentados de massa intangível, precipitava para o momento que teria que se jogar, saltar corajosamente de encontro à gravidade. E enquanto ela cai, nós olhamos o céu: "será que chove?" - diz a senhora de meia-idade ao taxista que por sua vez resmunga (já pensando no passageiro que teria que buscar dali a 15 minutos): "tá com cara".
Impassivelmente os dois se distanciam sem saber que gostavam de ver os pássaros comendo farelos de lixo na praça sempre que se pegavam desatentos na rua. 
Ela desceu, pagou a corrida (claro que pensando 3 vezes no preço da passagem do ônibus e do quanto economizaria se não fosse tão preguiçosa e ranzinza), correu, quando os pingos começaram a se quebrar contra o chão duro do asfalto e do concreto. À medida que os pedaços de água iam se desfazendo em poças amorfas ela ia estendendo os braços, abraçou os cachos negros do sobrinho que corria para o fora do prédio marrom desbotado: "Tia!" ... e prosseguiu: "Aprendi a escrever a letra F! É! A primeira do seu nome!" - "Que bom! Já sabe escrever! Um dia ainda será um grande jornalista.". - "O quê é um jornalista?" - "Alguém que pinta a vida e o mundo com as letras, cada um ao seu estilo.". ...
Um silêncio irrompe o amor trocado.
Em seguida um trovão rompante rasga o céu, o estrondo vem em menos de três segundos, quando se deram conta estavam já começando a se encharcar. 
Poucas quadras ali abaixo o taxista abastecia seu veículo enquanto fumava um cigarro. Parecia inquieto, afinal chuva atrapalha o serviço numa cidade média. Já não era moço para passar o dia inteiro na rua e também não tinha o suficiente para deixar de trabalhar. Tomou seu café, lançou a bituca longe, que escorreu com o fluxo d'água para dentro de um bueiro, e retornava ao seu ponto cotidiano - o seu cliente anterior havia desmarcado o futebol com os amigos, não iria mais precisar do táxi (não que o motorista soubesse disso) - avistou uma mulher magra como uma garça e de trejeitos delicados, mas rápidos e precisos, segurando entre os braços uma criança de cabelo encaracolado, preto, dormindo suavemente ao som da chuva. Dirigiam-se provavelmente ao Shopping, para sair com uma criança num dia chuvoso. Ele contemplou os dois absorto em sua distância, enquanto a gota deslizava pelo vidro.
Só então lembrou que talvez fizesse muito tempo que estara embriagado  pelo trabalho, pela dor de permanecer todo o dia só. Deixando as pessoas e as pessoas o deixando. Tudo por dinheiro.
O quê dessa vida se leva? Pensou alto... e embora distante, sem a mínima chance de haver escutado, a mulher volteou a cabeça em sua direção olhou-o e acabou por reconhecê-lo. Lançou um gentil sorriso enquanto carregava o menino - que profundamente ignorava qualquer coisa que não fosse a delicadeza de seu sono.
O homem resolveu sair do carro, correu para ajudar a pobre senhora de meia-idade que tinha no colo sua bolsa, uma criança de já uns 6 oito anos além de um guarda-chuvas. Iria oferecer carona para ambos, mas primeiro ajudar a mulher a transportar tudo até o carro - essa ideia havia despertado nele não só um sentimento de bondade e amor fraternal pela senhora, mas também abalara o que ele não acreditava ser capaz de sentir. Após as 3 primeiras passadas vigorosas em direção ao casal de idade  antagônica um pulsar violento o arrebata pelo peito, as pupilas encolhem ele para estarrecido: um ônibus descontrolado atinge a senhora e a criança... o sangue mistura-se com a água, lavam-se as vidas, e a gota... virará vapor, dançará nas nuvens e um dia, quem sabe, retornará para limpar o rosto choroso, e o coração amargurado do pobre homem que trabalhou todos os dias da sua vida que pode.