quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Poema-Pássaro II

Se um pássaro pudesse saber
de todas as dores
que inventam, os homens, pra si.

Toda a delicadeza de suas penas
seria manchada de um turvo véu:
não poderia voar,
pesado de dores.

- É por isso que o homem não voa.

Se um homem
fosse pássaro,
quereria ser águia-gavião.

Mas de fato, seria Ícaro-galo ensimesmado
olhando de cima, como se a crista que leva
fosse coroa divina.

Caindo ao chão,
depois de voar cinco metros,
com o pescoço quebrado
morto, correria mais cinquenta.

- É por isso que é também dor,
o orgulho que pesa.

domingo, 14 de agosto de 2016

"¿Te has inclinado a veces para tocar la tierra donde el musgo defiende las flores más pequeñas?"
Sara Ibáñez.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Queira alguém que suporte seus silêncios
que queira molhar os pés na chuva
e prefira sapatos rotos.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Poema ao melhor amigo do homem

Se o tempo é invenção de bicho-homem
decreto desde ontem
e de anteontem
e de mais anteontens ainda,
a prescrição do calendário,
e seja ele a sombra dissidente
da sua presença,
meu caro amigo, lendário.

Que agosto nunca chegue,
julho nunca termine
e o tempo suspenso
seja apenas rima,
brinquedo velho
nas mãos de uma menina.
(ou ainda na boca,
na sua boca, cheia de dentes afiados,
como uma doce paparoca).

Para que esses dias de dor
sejam expurgos da vida,
para que,
ano que vem, ainda mais
não seja a despedida que se lembre,
e sim a sua selvageria,
a sua bagunça,
a de todos os animais.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Poema-Pássaro

Gosto do som das asas dos pombos
Sim ,eu sei - são os pássaros mais ruidosos,
mais desprezíveis,
mais que galinhas...

Mas,
com eles,
a experiência do voo
é mais verossímil.

Com as pombas,
tenho imagem,
vejo a dinâmica e,
tenho a sensação do som.

Sentir é sempre mais verdade que ver.

Com os pombos
sinto o voar,
sinto o vento que perpassa penas,
e o vento é toda uma arte de sentir.

Pombos e também sabiás,
e também rouxinóis, beija-flores,
corvos e bem-te-vis,
o diriam se pudessem.

E se pudesse, falar, falariam:
pobre homem,
ter linguagem e não ter voo.
Está preso na própria palavra!
...foi com ela
que inventou a liberdade.

sábado, 25 de junho de 2016

Desde muito cedo
vivi entrouxada nos livros.

Hoje ouço mais o apelo da vida,
e vivo
entrouxada nela.

domingo, 12 de junho de 2016

Conversa furada entre amiginhos.

No tribunal pós-moderno da inquisição, os juízes Donald Trump e Bolsonaro conversavam a respeito de relacionamentos gays:

quaestio facti: esse amor existe?
quaestio iuris: esse amor é licito?

Silogismo básico:

Premissa maior: Só humanos podem amar.
Premissa menor: Gays não são humanos.
Conclusão: Logo, gays não podem amar.

quaestio facti: não é amor.
quaestio iuris: isso é ilícito.


Segue-se outro silogismo:

Premissa maior: Gays não são humanos.
Premissa menor: Só é ilícito matar humanos.
Conclusão: Logo, matar gays não é ilícito.

A conversa termina com risadas: "esse Omar Mateen, ah.. que homem!, deveria ser glorificado hein?"

domingo, 5 de junho de 2016

Às experiências vividas e ao arquétipo da mulher-selvagem

(ou Balanço,
ou Waking life
ou Poema-prosa)


Ah doce, inconsistente e precipitada,
uma alma cheia de vísceras
e agora,
diante de um amor abortado
e outro
que apesar falência múltipla pela idade,
outros
insistem em manipular
como se pulsasse outra coisa que não
desespero.

Entre inúmeros acontecimentos
acordou,
cheia de um horror zombeteiro,
de um cansaço plácido,
é que despertou de outro modo, com outros olhos
– o demônio lhe esgueirou-se à noite.
Depois de muito tempo
enfrentando o olhar retornado do próprio abismo,
o aborto daquele amor
estremeceu
terras estrangeiras, esquecidas
– reconciliou-se.
Não sem dor, não sem o rasgar da carne,
não sem o ruir de um sonho breve.

Mas o sonho,
talvez ela dissesse,
é pra ser rasgado e a carne para ser breve.
E a vida no meio disso,
a vida grita, esbraveja e luta.
Pois é Drummond
a “vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia”,
não importa quantos espíritos negativos desejem,
falem,
velem o mal,
ela é muito mais do que a dor,
a organização perfeita e estéril de um armário de livros,
a vida é o riso,
seja de escárnio ou de bem-aventurança.
A vida é o precipitar-se da alma,
é o correr risco. 

Ela não só reconciliou-se,
fez um pacto diabólico
com o próprio abismo:
“aceito-te enfim, mas permita-me sempre
estender à mão para a terra mais lamacenta de seu ventre.”

Não posso dizer se o abismo concordou,
mas o jorrar do sangue voltou,
intenso..
intenso...
intenso....
e está vindo inundar palavras
e letras de um vermelho
rubro, liberto:
uma escrita que tento aqui recriar, hesitante,
trêmulo
porque aquela mulher,
que parece serenidade,
lua,
mel
e orvalho,
hoje é mulher-selva, selvagem, densa.

Olho-a daqui,
como se pudesse olhar o êxtase da intensidade,
como se pudesse personificá-lo,
mas sem mistificação,
preenchido de um orgulho ilustre.

E, se pudesse me ver, ainda mais este instante
diria: "é que toda morte é um desobrigar-se."

Sem mistificação, não sem mistério!?

Permaneço confuso e embrigado...