sábado, 31 de janeiro de 2015

Produtos de uma beleza cega

Era uma festa, e eu, o penetra - conhecia apenas o amigo do aniversariante. Quem está pensando que eu invadi mesmo, esperem um pouco, fui escolhido a dedo por este amigo, para acompanha-lo. Acho que era um aniversário, ou uma formatura. Qualquer festa grande e razoavelmente chique.

Almejava apenas bebedeira, diversão e quem sabe uma mulher para passar a noite, era jovem então. E você sabe como são os jovens, cheios de ilusão e erros à cometer, um grande sentimento de vida e nada de morte. Nessa época, fugimos disso, sem imaginar o quanto vida e morte são a mesma coisa.

E assim, sucedeu-se, ao principiar daquela festa. Todos bonitos, bem vestidos, belos produtos a se exibirem naquela grande vitrine, com sorrisos, gargalhadas, toques e conversas sutis cheias de significado oculto. Eu naquele meio, sem conhecer ninguém, pensei que pudera ser quem quisesse, um advogado, um banqueiro, um cirurgião plástico milionário. Veja que pensava, eu, pobre rapaz, estudante de literatura, queria ser todos menos eu, em um mundo cheio de possibilidades e dinheiro.

Bebi.

Bebi cerveja da mais cara, uísque do bom, até dividi uma doce champanhe - da verdadeira - com uma linda morena, com seus olhos verdes, nitidamente falsos, mas nem por isso menos encantadores. Ela era inteligente, para a surpresa do meu preconceito idiota. Sacou logo minhas referências literárias no linguajar recém adotado para impressioná-la.

Não tardou que botasse nota nas minhas falsas palavras, tanto quanto aqueles olhos. Eu, eu... pobre de mim, que era o herói, que era o rei, humilhado fui na frente de um grande círculo, aquela pequena traiçoeira pegou minha carteira, e em alto disse meu nome: Walter Pinto (Walter em homenagem ao Disney, Pinto do pai, morto e enterrado no pobre sertão). Eu sempre tive do orgulho do meu nome, mas fiquei atônito, perplexo, aquele era eu então? digno de riso? de escárnio?

Tinha flertado com talvez, umas cinco mulheres, da quinta me afastei, triste pela cena, triste por ter bebido tanto. Sentei num canto e reparei que naquela festa também haviam crianças, e senhores de idade. Enquanto de um lado crianças brincavam, do outro, o velho fazendeiro falava de sexo com a amante. E pode acreditar, era a pequena morena dos falsos olhos.

Nesse ponto, me senti livre por não ter participado daquela vida, mesmo que por uma noite. Então meus olhos se encontraram com os de uma menina cega. Foi encontro, sei não, só sei que ela parecia me ver e sentir da minha tristeza. Estávamos tão próximos que pude escutar  da conversa. Ela tinha conhecido uma jovem da minha idade, que em voz doce exclamara o quanto a pequenina era bonita. Em resposta, teve somente o sussurro "foi minha mãe quem mandou dizer?" E a moça sorriu desconcertada.

Passado metade de ora, a moça ao reparar que a menina ficava sentada, chamou-a para cadeiras mais próximas a minha. Perguntando 'que diabos' - e esse começo foi pensamento meu - por que ela achou que a mãe havia pedido a uma estranha para elogiar a filha. E um novo sussurro feito flecha ouvi "porque eu sou cega, não posso dizer se sou bonita". A moça, com tanta sensibilidade respondeu que não era preciso olhos para se ver bonita, que a visão não era tão importante, não tanto quanto o tato, que recobre todo o nosso corpo, e começou:

"Me dê suas mãos, agora as ponha no seu cabelo, ele é liso e loiro como se fosse raios de sol. Você pode sentir os fios finos, macios e lisos, não pode? Um cabelo assim só pode ser lindo... pegue agora no meu e veja como é ressecado... qual cabelo você acha mais lindo?"

A menina ficou contrariada, mas acabou por concordar que talvez o seu cabelo fosse o mais bonito. E assim a moça prosseguiu, pedindo para a pequenina botar as mãos em volta do rosto, na boca bem delineada de criança, no seu nariz pequeno e arrebitado, " o desejo de toda mulher".  Ela foi narrando as características físicas da menina e fazia ela concordar toda vez que sentia que a moça descrevia algo certo.
Por fim, a criança deu um sorriso leve "é, talvez eu seja bonita mesmo..."

A moça completou, "nunca esqueça que você é linda, e também, nunca deixe ninguém lhe dizer o oposto, menina". A doce criança começou a chorar de levinho e finalmente desabou no colo de uma desconhecida "minha mãe sempre me diz que eu sou bonita, mas todo mundo também diz, 'coitadinha dela, cega...', como se eu fosse um monstro digno de pena..."

Eu, bêbado e humilhado, também chorei... com tamanha doçura e delicadeza.

Fui embora com certeza, eu era escritor, Walter Pinto, e iria exibir isso ao mundo, com a sensação de que não sou um produto.