domingo, 6 de outubro de 2019

Apenas um texto sobre morte


Minha avó morreu. Dia 05 de outubro de 2019, aos 93 anos. Um dia antes do seu aniversário de casamento com meu avô, que já se foi há 26 anos. Para alguns eles se casaram de novo no céu.
Convivi com ela, diariamente, minha vida inteira: mesma casa. E minha avó morreu com um suspiro e os olhos fechados. Ela descansou. E descansou apenas depois de perder o movimento das pernas, depois dos braços, depois de ficar surda e perder a fala, depois de três AVC's, depois de perder a capacidade de comer e precisar de sonda gástrica, depois de algumas pneumonias e precisar de oxigênio constante. Depois de muitos sustos, dias e dias no hospital. Depois de longos cinco anos sofrendo. Ninguém deveria viver assim, ninguém deveria viver tanto.
Os últimos anos foram difíceis, sempre foi. A imagem de uma avó é sempre a de uma mulher doce e sábia. Ela só tinha a segunda qualidade. Minha avó não sabia demonstrar afeto, ao menos não com declarações de amor, abraços ou beijos. Era fechada, ríspida, briguenta. Era como um remédio forte, bem amarga, mas necessária.
Ela já foi uma mulher jovem, bonita e apaixonada, mas essa eu só conheci em fotos. A Estácia que sempre chamei de vó era aquela que soube ser boa esposa, que criou cinco filhos, que tinha punhos de ferro. Muitas vezes era rabugenta e reclamona, acho que foi o que aprendeu na vida. Dificilmente algo estava bom para ela. Ela carregava essa amargura que só quem sofreu muito sabe, e que a gente só consegue espiar. Mãe de cinco filhos, avó de oito netos, e outros tantos bisnetos. Família nunca é fácil, ela precisava ser assim, e precisou mais ainda quando meu avô morreu.
Mas, como disse, era remédio forte, amarga e necessária. Soube ser matriarca como poucas vezes vi. Era necessária, essencial, de tantas formas, soube amar de tantas outras. Poucas pessoas sabem, mas foi minha avó que pagou boa parte dos meus estudos (se não fosse ela, se fossem só colégios públicos, quem sabe se seria advogada, professora?) e boa parte do meu tratamento ortodôntico, que me ensinou, sem querer ensinar, educação financeira. Foi minha avó que me fez gostar de plantas dentro de casa, e do silêncio, e da organização... É da comida dela que vou sentir falta para sempre. Ela socorreu financeiramente filhos e netos, sempre. Era seu jeito de cuidar, mesmo que às vezes exigisse alguma contrapartida disso. Mesmo que às vezes parecesse não amar ninguém.
É o que uma mulher da idade dela, do tempo dela, poderia fazer. Filha de imigrantes, sua infância foi trabalho e penúria. Quase não estudou, mas não se contentava em ser apenas dona de casa, ela trabalhava, costurava e até mesmo criava roupas. É o que ela pode fazer, já que poucas vezes na vida pode de fato, pensar em si mesma. É o que uma mulher como ela poderia fazer, é o que uma mulher como ela poderia ser.
Só que ela não foi só isso, foi muito mais e não cabe aqui. Minha avó era feminista, era resistente, mesmo sem saber! E eu só queria dizer que minha avó foi a mulher que, polaca e de olhos azuis, casou-se com um negro – o primeiro que muitos em sua colônia viram, em um Brasil muito mais racista que o de hoje. Ela trabalhava e tinha seu próprio dinheiro, em meio a uma sociedade na qual isso não era visto com bons olhos. Minha avó para qualquer um , talvez, pareceria uma velha 
solitária, ranzinza, conservadora. Ela era tudo isso sim, mas também era pra frentex, era um mulherão da porra!

Ninguém deveria demorar tanto para morrer como ela demorou. Ninguém deveria sofrer tanto. Ninguém deveria viver tanto e não entendo quem deseja isso para si.
E o mundo não deveria exigir de mulher nenhuma ser tão forte como minha avó era. Foi o mundo exigiu que ela fosse remédio amargo.

Obrigada por ter sido sempre assim, vó, por ter feito o seu melhor. Que eu saiba honrar seu legado!

quarta-feira, 12 de junho de 2019

A mão e o homem (Crônicas de uma trabalhadora pendular I)


Sábado passado, estava eu, mais uma vez, voltando de União para Ponta Grossa, pequenina de cansaço em um estado parcial de vivicitude, como o stand by das televisões e outros aparelhos eletrônicos. Era como se metade de mim estivesse no sono e a outra na realidade – o balanço do ônibus induz o sono que, junto com o cansaço, bate forte e faz as pálpebras pesarem toneladas. No entanto, sono frágil e incerto – insônia e ansiedade sempre aparecem para dar um olá, me lembrando de que ainda estão aqui. Mas o certo é que nesse estado de semi-vigília ou semi-sono, eu fiquei entre cochilos e assombros com as paradas, captando poucas informações a respeito da realidade do ônibus que me cercava.
No entanto, ao acordar de um cochilo, provavelmente pelo barulho que o ônibus fez ao passar por uma estrada malacabada, abri os olhos, taciturna, desconcertada e vi a mão. Não foi um homem e sua mão que vi primeiro, mas sim a mão e seu homem. Uma mão bruta, velha, tatuada, não acreditei no que meus olhos estavam captando (depois de captar quase nada ao longo da viagem)! Não era uma mão qualquer, era uma mão tatuada: suástica nazista. Acordei acordada! O sono sumiu! Fiquei alerta como um cão de caça.  Misto de inquietude, assombro e um desejo indiscreto de saber mais. 
Passei, um tanto quanto indiscreta mesmo, a examinar o homem que aquela tatuagem, que aquela mão portava. Nada demais, não era um jovem skinhead neonazista, não tinha nenhuma outra qualidade física que saltasse aos olhos. Era apenas um senhor de uns 70 anos, pele clara, mas judiada, olhos claros.
Talvez a jaqueta de couro pudesse significar algo, talvez o boné. Mas, nada, nada, era tão perturbador quanto aquela mão. Talvez, no mais, a idade – tanto da tatuagem quanto do senhor – fosse o que assombrasse demais. Se fosse um jovem, talvez nem tudo estivesse perdido; a maioria de nós é extremamente estúpido quando jovem e, quem sabe eu ainda o seja, já que não posso me arrogar a ideia de que sou velha (seria outra estupidez). Mas não, era um homem velho com uma tatuagem velha, tatuagem que há anos figurava naquela mão, explícita, sem maiores problemas, anunciando para o mundo que seu portador, muito provável, consegue desejar a morte, é permeado por um ódio indecente.
Esse misto de inquietude, assombro e desejo indiscreto de saber mais me coagiu a mandar mensagem à um amigo e, no instante em que ele respondia, em tom jocoso, “vá falar com ele”, outro fato ocorreu. Parando o ônibus em mais uma cidade, entrou uma mulher, sentou-se no banco à frente dele. Não o olhou, não cumprimentou, desconheceu. Cinco minutos depois, um bilhete é passado, dela para ele, de forma furtiva. Tentei ler o que ele lia. Míope sem óculos que estava, depois de alguns segundos, tive que desistir. O que seria esse bilhete? O meu amigo, por óbvio, que já não me levava a sério, no seu imaginário apenas figurou a possibilidade de ser um casal que combinava de ir ao motel, sair junto ou outra coisa. Ideia que foi reforçada quando reparei, melhor olhando, que aquela mão também era portadora de uma aliança.
Seria algo tão simples? Quem sairia com um nazista senão alguém que compactuasse com as ideias que ele carrega na mão? Não sei dizer ao certo, meu imaginário – povoado de histórias de Agatha Christie lidas na infância – se perguntou se ele não seria um matador de aluguel. Parece impossível e estúpido falar sobre, escrever sobre, mas acontece, e mais perto do que imaginamos. Poderia ser, poderia ser um acerto de morte, de serviço, qualquer coisa que apontasse justificativa.
Mais dez minutos, o homem saiu do seu assento para figurar ao lado da mulher, conversam um pouco e, logo, desceram juntos, com pouco disfarce de que se conheciam. Todavia não pareciam namorados, não eram carinhosos, não estavam corporalmente próximos demais... De certo que era apenas meu desejo indiscreto de saber, sobretudo sobre tudo que vejo e ouço. Parte de mim quis descer junto, segui-los, como uma louca, descobrir quem eram o que iriam fazer. Loucura total, que parte minha é essa capaz de tamanho contrassenso? 
A razão venceu o ímpeto, fiquei – eu. Me deixaram só no ônibus, não de fato, mas me senti só, sem ninguém que pudesse perscrutar, sem o amigo que já não me levava muito a sério, buscando a leveza para a cena. A única seriedade foi: escreva sua história sobre isso. Mas não queria uma história de Agatha Christie e nem poderia – sou apenas artesã das palavras.
Resolvi atender a sugestão – e cá estou – vez que tudo isso me fez perceber que não era um homem que eu via, era uma mão personificada, um sujeito objetificado – sobre o qual eu estava tecendo as mais variadas conjecturas sem nem sequer saber nada, nada mesmo, sobre ele. Muito menos sobre a mulher! O máximo que sei são suas características físicas e nada mais.... Provável, repito, que meu amigo estivesse certo, eles iriam namorar e nada mais. Nazistas também amam, e sentem dor, e comem e vão ao trabalho e, talvez, às vezes, escrevem sobre seus cotidianos.
Saber disso não resolve a questão ou diminui o assombro. O que fazer com o outro?
 E se ele tivesse sentado ao meu lado?
Eu, incomodada, teria levantado para sentar-me em outro lugar (a não ser que o assombro e o medo me paralisassem)?
Atitude correta? Não seria o mesmo que eles, em regra, fazem, e que critico tanto? Segregação? Como agir diante de alguém assim? O que significa no aqui, na região onde eu moro, um nazista à plena luz do dia, sem medo de se mostrar? O que alguém assim é capaz de fazer, o que alguém assim desperta dentro de nós?
Me pergunto e mantenho em mente a assertiva de Deleuze, é preciso vigiar o fascista em nós. Assim como os matadores de aluguel, os fascistas então mais perto do que imaginamos. Às vezes, eles se sentam próximo a você no ônibus, outras vezes, é só examinar o espelho.

On the road, 30 de maio de 2019.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Crônicas de uma trabalhadora pendular

Eu que sempre quis ser arquiteta das palavras, hoje me contento em ser pequena artesã, sem grandes ambições e luxúrias. É que não sou diplomata nem nunca o serei, sou apenas uma trabalhadora, do interior do Paraná que há pouco iniciou rotina nova. Sendo este o fato, que se configura como uma misto de sonho e realidade, ser aquilo que quis ser, professora, ele veio a acontecer de forma abrupta e neste cenário horrendo para tal profissão.
Com o propósito de adoçar vivências e a própria alma que caleja sob o embalo de um ônibus e das paisagens paranaenses, inicio igualmente um novo tópico de escrita, de pequena artesã: as crônicas de uma trabalhadora pendular.
Um mês de trabalho, trabalho novo, professora, em outra cidade, já computo quarenta horas mensais dentro dos princesas dos campos. Metade do mês vivido aqui, outro acolá, metade dos planos remanejados, metade do sonho ocorrido - ainda não exaurido. Um conhecido, dentro de um misto de acalanto e brincadeira buscou lembrar de outro conhecido, que viaja semanalmente dezoito horas, cruzando parte desse Brasil de deuses e anti-heróis. O acalanto serviu, por hora, embora seja o ocaso (e quem sabe o acaso) de sempre lembrarmos de fazer esse ato aqui tentado de adoçar vivências, sempre tem alguém pior, um sofrimento mais terrível, uma rotina mais desgastante. Não que isso diminua o peso das horas passadas em um ônibus e o cansaço de dormir poucas horas por dia. A iminência do desemprego, que atinge mais de 10% de nós, nos faz aceitar qualquer negócio (e olhe que do meu não posso reclamar não, salário bão, lugar bão, e fazendo o que se gosta?, vixi, até paro de falar em amarguices) - é o nosso modo de produção, "mais justo que os anteriores".
Confesso que desvio da teleologia, impossível passar desapercebida por isso, valia mais que uma nota.
O que venho de fato, contar, humildemente aqui, é que passar quarenta horas mensais em princesa dos campos - a companhia mesmo, e não minha cidade natal, tão querida e odiada - é me permitir conhecer mais essa gente que circula por entre cerca de 10 cidades diferentes: Ponta Grossa, Imbituva, Irati, Rebouças, Céu Azul, Mallet, Paulo Freitas, Paula Frontin, União da Vitória!(?) Se esqueci de alguma (ou errei o nome) é que são quarenta horas passadas entre leituras, preparo de aulas, cochilos e eventuais conversas com desconhecidos.
Gente que entra e sai o tempo todo, com mais de quinze paradas ao longo de cada viagem, gente com um cheiro específico, um sotaque específico, um jeito de ser específico, majoritariamente adultos com mais de 40 anos, oriundos do meio rural. Entre as pequenas conversas que pego ouço falar que ter duas granjas não vale a pena - seja pelo gasto com energia elétrica, seja pela falta de tempo que isso gera. Em outro momento ouvi duas mulheres discutindo sobre a mortadela, supostamente feita com carne das entranhas de cavalos. Semana passada conversei com um senhor, que nunca fez mais que o ensino médio, que me falou aquilo que um filósofo italiano havia acabado de me falar em livro: nosso processo de socialização vai à bancarrota, na medida em que crianças conversam mais com dispositivos eletrônicos do que com humanos - ou como o italiano de forma chique dizia "hoje uma criança aprende mais palavras por meio de máquinas do que pela própria mãe". As mãos desse senhor eram calejadas, ele estava queimado de sol, tinha as roupas sujas.
A cada nova viagem, meu coração aumenta e diminui. Meu cansaço aumenta e diminui. Fico curiosa para conhecer essa gente - embora minha pequena misantropia (que em determinadas horas aparece) sempre inconveniente me barra. Mas isso foi apenas um mês e este é um pequeno relato - de pequena artesã; há tanto a se dizer e há tanto a se calar e há tanto o que adoçar (menos o café, nunca o café!)!