sábado, 21 de outubro de 2017

Os retumbantes


Na praça relativamente cheia, sentada, para ocupar o tempo ela fuma. Santos Andrade: de um lado um prédio histórico imponente, é a Universidade, de outro vendedores ambulantes, transeuntes que passam com pressa, no movimento-formiga do dia a dia. Ela senta e olha pra dentro. O excesso de informações sonoras e visuais impede. De repente escuta: - vô pedi cigarro praquela moça! Virou seu rosto, sentada, muda, fumando e escutando. 
- Moça vim pedir um cigarro procê. Ele se ajoelha, como se pedisse perdão e não cigarro, ela diz que não precisa, ele diz - Precisa sim, que é pra nois mostra quem a gente é. Ela dá o cigarro, pergunta se tem isqueiro, mas o cigarro é pra depois. Ele levante, sujo, maltrapilho, com grandes olhos esbugalhados e o cabelo amassado embaixo de um boné, mas isso, dela, nem chama atenção. Ela olha sem olhar pro volume extra na calça, ele tá com uma ereção. E ela sentada ali, na frente dele, querendo olhar pra dentro e olhando e escutando aquilo As pessoas em seu movimento-formiga passam, olham com desconfiança pra ele, voltam o olhar pra ela, mas seguem em seu movimento-formiga. Ninguém se importa?
Ele continua falando, descontínuo, viciado, usa alguma coisa, provavelmente crack, mas ela pensa, os dentes não estão tão ruins, se fosse crack, estariam piores e ela não consegue olhar os olhos esbugalhados e ele, todo descontínuo conta sua história pra ela, que não é que não queira ouvir, só queria ocupar o tempo, já disse, olhando pra dentro. Ajoelhado pra pedir perdão, pedir cigarro, por ser viciado, até achou uma ponta de cigarro de maconha no chão e fala que aquilo é do cão, do diabo, fala que o homem é bicho, diz que não existe esperança, só vingança, como se falasse no juízo final. Do pouco contínuo que disse: teve a prima morta por dívida do vício, seus olhos esbugalhados soltavam mais ainda da órbita ao dizer isso, era de menor, não tinha nada haver com aquilo. E ele ia se vingar. Ela lembra de Faroeste Cabloco, olha pra boca dele pra não olha no olho, mas a boca também parece inflamada, e a saliva começa a juntar nos cantos: raiva falada. Ele ia se vingar, porque a vingança é o que existe. E falou de um traficante que teve as pernas e os braços cortados por dois usuários que tinham dívidas. Era vingança desse tipo, porque morte matada se paga com morte matada.
Não para de falar e ela não para de ficar muda. Seu cigarro acaba e ela quer sair dalí, permanece imóvel, com medo do bicho-homem que não quis ser formiga. Ele também parecia estátua, só sua boca mexia, e a saliva que acumulava. As vezes ele se balançava, balançava os braços e continuava olhando fixo pra ela, com os olhos enormes e inflamados. Ela pensa que não pode se mexer, pensa se o medo que sente é real ou se ele só precisa contar sua história, que não tem ninguém pra ouvir. Ela ouve. Ouve e lembra do medo do homem, na figura de tanto homem que conheceu, medo do homem-pai, do homem-amante, do homem-que-fingia-ser-amigo. O medo dela não era dele. Era do homem-bicho. Do homem que  tem só abismo no olho, só raiva nos dentes e aquele dalí provavelmente tinha o estomago também vazio e a alma, se alma ainda tinha, carente de amor. Fica pensando será que algo nela atraiu ele? E se ela fosse homem, teria menos medo? E se ele fosse mulher? Teria mesmo medo? Será que ele teria a mesma raiva? Será que amanhã ainda estará vivo?
E a raiva no lugar da fala e a postura que pede perdão não combinam. Ele sabe que é desgraçado, na cabeça dele já fez mal e não merece atenção, mas alí ele tento e teve, seja por medo ou por falta de opção de quem tinha que matar o tempo mas teve mesmo o tempo congelado. 
No meio da fala corte abrupto - então tá bom moça, vo lá, apontando pro lado direito e saí em linha reta, passo forte e olho no vazio. Quem sabe olhando pra dentro. Ela vira a cabeça, segue os passos dele, levanta e tem que ir pra mesma direção que ele. Anda devagar que ele anda rápido. Ambos vão embora e ela olha pra dentro e só vê o olho dele, abismo dentro de abismo.