quarta-feira, 2 de abril de 2014

Rabiscos de vida...

Antes de voltar para casa, já cansado da rotina, o homem sentou-se no banco da praça e relembrou a conversa da noite anterior: Ao dar boa noite para o filho, reparou que ele chorava. Perguntando-lhe o que havia ocorrido, o menino respondeu, com a simplicidade de ser criança "Pai, não consigo me lembrar direito do rosto da mamãe, eu vou esquecer dela??" Sem saber o que responder, o homem apenas lhe disse: "Dorme que passa, meu filho."
Mas tal desmemória não angustiava apenas a criança, tanto que Eduardo passou alguns minutos absorto em seus pensamentos, sem saber como encarar o filho. E, logo uma moça sentou ao seu lado - perguntou se ele estava bem. Desmoronou, desabafou, contou o ocorrido, sem mais perguntas, sem mais apresentações.
Na sua ingenuidade, a moça, contando com apenas 18 anos, respondeu que o problema não era tanto o esquecimento, mas a falta de memória: "Sabe, eu não conheci meu avô, mas meus pais sempre contaram histórias dele, como ele era amoroso comigo (e com todos), como me me pegava no colo quando bebê, a paz que ele trazia. E, eu acho que é por isso que eu sempre me senti perto dele, com muito amor. Talvez se você, a cada dia, falasse dela pra ele? Quem sabe a saudade diminuiria, tanto a dele, como a sua. Falar de alguém é uma maneira de estar próximo dessa pessoa..."
Estupefato, Eduardo ergueu, pela primeira vez, a cabeça, olhou para a moça e agradeceu dizendo-lhe que ela deveria ser poeta. Com uma risada leve e distante a moça disse que era apenas uma estudante de história "... que há muito não escrevia, que há muito não sentia."
"Sem sentimento? Se as suas palavras são ausentes disso, eu realmente estou perdendo a cabeça!" Dito isto ele levantou, com mais ânimo e sempre com dificuldade em palavras, sorriu brevemente e desejou que ela voltasse a sentir.

***

Passado semana, a angústia de Eduardo sumiu, dando lugar a outro sentimento, meio pesado, mas sem dúvida com um objeto mais leve: àquela moça. Precisava encontrá-la, dizer algo, agradecer melhor, retribuir, fazer algo, enfim. Tanto, mais tanto, que passou um dia inteiro no mesmo banco, da mesma praça, até, por um quase milagre, avistá-la. Dando conta de quem era, a moça parou e Eduardo estendeu-lhe um envelope: "Abra! É um presente."
Com um certo receio, mais muito curiosa a moça abriu o envelope. Era uma pequena carta, do filho daquele homem que afoito estava a sua frente, tão diferente daquele dia. Humildemente o menino agradecia: "Obrigado moça da história, graças à você estou mais perto da mamãe, e do papai também. Você deve ser um anjo".
A moça, Mariana, conteve o choro, e Eduardo lhe disse que precisava retribuir a ajuda, e que entregar o que o filho escreveu era o meio mais sincero. Não houve abraço, não houve perguntas, nem apresentações. Cada um seguiu seu caminho, o homem sorria, a moça queria escrever e pensava " ter do que lembrar é sempre a dor mais necessária."

3 comentários:

Anônimo disse...

Profundo, inocente, e sincero. Simples. Ótimo.

Anônimo disse...

A memória as vezes parece chuva em algum canto perdido do mundo... Assim como às vezes aquelas gotas sorrateiras pingam sobre a gente como gentileza do céu, elas também podem encharcar e nos fazer querer abrigo... um teto. O teto do esquecimento...
Mas... uma tempestade arranca qualquer teto se for forte o suficiente...
Aprendi que amor puro (como o de criança) é a semente de muitas das tempestades da memória.
Que haja chuva então...?

K. disse...

Que haja muita chuva!!!