Minha
avó morreu. Dia 05 de outubro de 2019, aos 93 anos. Um dia antes do seu
aniversário de casamento com meu avô, que já se foi há 26 anos. Para alguns
eles se casaram de novo no céu.
Convivi
com ela, diariamente, minha vida inteira: mesma casa. E minha avó morreu com um
suspiro e os olhos fechados. Ela descansou. E descansou apenas depois de perder
o movimento das pernas, depois dos braços, depois de ficar surda e perder a
fala, depois de três AVC's, depois de perder a capacidade de comer e precisar de
sonda gástrica, depois de algumas pneumonias e precisar de oxigênio constante.
Depois de muitos sustos, dias e dias no hospital. Depois de longos cinco anos
sofrendo. Ninguém deveria viver assim, ninguém deveria viver tanto.
Os
últimos anos foram difíceis, sempre foi. A imagem de uma avó é sempre a de uma
mulher doce e sábia. Ela só tinha a segunda qualidade. Minha avó não sabia
demonstrar afeto, ao menos não com declarações de amor, abraços ou beijos. Era
fechada, ríspida, briguenta. Era como um remédio forte, bem amarga, mas
necessária.
Ela
já foi uma mulher jovem, bonita e apaixonada, mas essa eu só conheci em fotos.
A Estácia que sempre chamei de vó era aquela que soube ser boa esposa, que
criou cinco filhos, que tinha punhos de ferro. Muitas vezes era rabugenta e reclamona, acho
que foi o que aprendeu na vida. Dificilmente algo estava bom para ela. Ela carregava
essa amargura que só quem sofreu muito sabe, e que a gente só consegue espiar.
Mãe de cinco filhos, avó de oito netos, e outros tantos bisnetos. Família nunca
é fácil, ela precisava ser assim, e precisou mais ainda quando meu avô morreu.
Mas,
como disse, era remédio forte, amarga e necessária. Soube ser matriarca como
poucas vezes vi. Era necessária, essencial, de tantas formas, soube amar de
tantas outras. Poucas pessoas sabem, mas foi minha avó que pagou boa parte dos
meus estudos (se não fosse ela, se fossem só colégios públicos, quem sabe se
seria advogada, professora?) e boa parte do meu tratamento ortodôntico,
que me ensinou, sem querer ensinar, educação financeira. Foi minha avó que me
fez gostar de plantas dentro de casa, e do silêncio, e da organização... É da comida dela que vou sentir falta para
sempre. Ela socorreu financeiramente filhos e netos, sempre. Era seu jeito de
cuidar, mesmo que às vezes exigisse alguma contrapartida disso. Mesmo que às
vezes parecesse não amar ninguém.
É
o que uma mulher da idade dela, do tempo dela, poderia fazer. Filha de
imigrantes, sua infância foi trabalho e penúria. Quase não estudou, mas não se
contentava em ser apenas dona de casa, ela trabalhava, costurava e até mesmo
criava roupas. É o que ela pode fazer, já que poucas vezes na vida pode de
fato, pensar em si mesma. É o que uma mulher como ela poderia fazer, é o que
uma mulher como ela poderia ser.
Só
que ela não foi só isso, foi muito mais e não cabe aqui. Minha avó era
feminista, era resistente, mesmo sem saber! E eu só queria dizer que minha avó
foi a mulher que, polaca e de olhos azuis, casou-se com um negro – o primeiro
que muitos em sua colônia viram, em um Brasil muito mais racista que o de hoje.
Ela trabalhava e tinha seu próprio dinheiro, em meio a uma sociedade na qual
isso não era visto com bons olhos. Minha avó para qualquer um , talvez, pareceria uma
velha
solitária, ranzinza, conservadora. Ela era tudo isso sim, mas
também era pra frentex, era um mulherão da porra!
Ninguém
deveria demorar tanto para morrer como ela demorou. Ninguém deveria sofrer
tanto. Ninguém deveria viver tanto e não entendo quem deseja isso para si.
E
o mundo não deveria exigir de mulher nenhuma ser tão forte como minha avó era. Foi o mundo exigiu que ela fosse remédio amargo.
Obrigada
por ter sido sempre assim, vó, por ter feito o seu melhor. Que eu saiba honrar seu legado!
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