quarta-feira, 28 de abril de 2021

Uma filha boa

(Homenagem à Angélica Freitas)


porque uma filha boa
é uma filha limpa
e se uma filha é limpa
ela é uma filha boa

porque uma filha boa
é uma filha obediente
e uma filha obediente
é mansa e boa e limpa

e uma filha má
é uma filha braba e suja
e uma filha braba e suja
é uma filha indesejada

porque uma filha boa
espere pacientemente
o comando do pai
espera pacientemente
o marido
e depois o comando do marido.

porque uma filha boa
é um pedaço de papel em branco
branca, limpa, inerte.

e uma filha boa
é uma filha calada
diante dos gritos do pai
e uma filha calada
é uma filha obediente.

porque uma filha boa
não tem o próprio desejo
é boa e limpa e frígida



Legítimo representante


No fundo da rua da minha casa,
que desce longe, numa quebrada,
mora um sujeito preto,
um sujeito louco.

Não se sabe como ele mora,
não se sabe se é drogado, viciado,
ou louco de vez e por hora.

Todo dia,
um pouco mais cedo um pouco mais tarde
ele sobe a rua.
Às vezes sereno, às vezes berrando qualquer diabrura.
Ele fala sozinho, ele fala pra lua,
tem o rosto fechado,
zangado.

Todo dia, no final do dia,
ele desce a rua.
Do mesmo jeito,
quase sempre zangado,
como quem desconhece alegria.

Mas, louco do jeito louco dele
que não se sabe o quanto é
ele representa o desejo ímpar, máximo, inenarrável,
de todo ser humano:
o de não ser invisível.

Basta vê-lo, vê-lo como um ser,
para além de um louco,
para além da sua pele.

Cumprimentá-lo, usar os olhos, ver...

Ele passa sereno,
sem xingamentos, sem diabruras,
sem zangar com ninguém.

Espectro ameno.


(março de 2021)