Sábado passado, estava
eu, mais uma vez, voltando de União para Ponta Grossa, pequenina de cansaço em
um estado parcial de vivicitude, como o stand by das televisões e outros aparelhos eletrônicos. Era como se
metade de mim estivesse no sono e a outra na realidade – o balanço do ônibus
induz o sono que, junto com o cansaço, bate forte e faz as pálpebras pesarem
toneladas. No entanto, sono frágil e incerto – insônia e ansiedade sempre
aparecem para dar um olá, me lembrando de que ainda estão aqui. Mas o certo é
que nesse estado de semi-vigília ou semi-sono, eu fiquei entre
cochilos e assombros com as paradas, captando poucas informações a respeito da
realidade do ônibus que me cercava.
No entanto, ao acordar
de um cochilo, provavelmente pelo barulho que o ônibus fez ao passar por uma
estrada malacabada, abri os olhos,
taciturna, desconcertada e vi a mão. Não foi um homem e sua mão que vi
primeiro, mas sim a mão e seu homem. Uma mão bruta, velha, tatuada, não
acreditei no que meus olhos estavam captando (depois de captar quase nada ao
longo da viagem)! Não era uma mão qualquer, era uma mão tatuada: suástica nazista. Acordei acordada! O sono sumiu! Fiquei alerta como um cão
de caça. Misto de inquietude, assombro e
um desejo indiscreto de saber mais.
Passei, um tanto quanto indiscreta mesmo, a
examinar o homem que aquela tatuagem, que aquela mão portava. Nada demais, não
era um jovem skinhead neonazista, não
tinha nenhuma outra qualidade física que saltasse aos olhos. Era apenas um
senhor de uns 70 anos, pele clara, mas judiada, olhos claros.
Talvez a jaqueta de
couro pudesse significar algo, talvez o boné. Mas, nada, nada, era tão
perturbador quanto aquela mão. Talvez, no mais, a idade – tanto da tatuagem
quanto do senhor – fosse o que assombrasse demais. Se fosse um jovem, talvez
nem tudo estivesse perdido; a maioria de nós é extremamente estúpido quando
jovem e, quem sabe eu ainda o seja, já que não posso me arrogar a ideia de que
sou velha (seria outra estupidez). Mas não, era um homem velho com uma tatuagem
velha, tatuagem que há anos figurava naquela mão, explícita, sem maiores
problemas, anunciando para o mundo que seu portador, muito provável, consegue desejar a
morte, é permeado por um ódio indecente.
Esse misto de inquietude,
assombro e desejo indiscreto de saber mais me coagiu a mandar mensagem à um
amigo e, no instante em que ele respondia, em tom jocoso, “vá falar com ele”,
outro fato ocorreu. Parando o ônibus em mais uma cidade, entrou uma
mulher, sentou-se no banco à frente dele. Não o olhou, não cumprimentou, desconheceu. Cinco minutos depois, um bilhete é passado, dela para ele, de forma
furtiva. Tentei ler o que ele lia. Míope sem óculos que estava, depois de
alguns segundos, tive que desistir. O que seria esse bilhete? O meu amigo, por óbvio,
que já não me levava a sério, no seu imaginário apenas figurou a possibilidade
de ser um casal que combinava de ir ao motel, sair junto ou outra coisa. Ideia
que foi reforçada quando reparei, melhor olhando, que aquela mão também era
portadora de uma aliança.
Seria algo tão simples?
Quem sairia com um nazista senão alguém que compactuasse com as ideias que ele
carrega na mão? Não sei dizer ao certo, meu imaginário – povoado de histórias
de Agatha Christie lidas na infância – se perguntou se ele não seria um matador
de aluguel. Parece impossível e estúpido falar sobre, escrever sobre, mas acontece,
e mais perto do que imaginamos. Poderia ser, poderia ser um acerto de
morte, de serviço, qualquer coisa que apontasse justificativa.
Mais dez minutos, o
homem saiu do seu assento para figurar ao lado da mulher, conversam um pouco e, logo, desceram juntos, com pouco disfarce de que se conheciam.
Todavia não pareciam namorados, não eram carinhosos, não estavam corporalmente
próximos demais... De certo que era apenas meu desejo indiscreto de saber,
sobretudo sobre tudo que vejo e ouço. Parte de mim quis descer junto,
segui-los, como uma louca, descobrir quem eram o que iriam fazer. Loucura total, que parte minha é essa capaz de tamanho contrassenso?
A razão venceu o ímpeto, fiquei – eu. Me deixaram só no
ônibus, não de fato, mas me senti só, sem ninguém que pudesse perscrutar, sem o
amigo que já não me levava muito a sério, buscando a leveza para a cena. A
única seriedade foi: escreva sua história sobre isso. Mas não queria uma
história de Agatha Christie e nem poderia – sou apenas artesã das palavras.
Resolvi atender a
sugestão – e cá estou – vez que tudo isso me fez perceber que não era um homem
que eu via, era uma mão personificada, um sujeito objetificado – sobre o qual
eu estava tecendo as mais variadas conjecturas sem nem sequer saber nada, nada
mesmo, sobre ele. Muito menos sobre a mulher! O máximo que sei são suas características
físicas e nada mais.... Provável, repito, que meu amigo estivesse certo, eles
iriam namorar e nada mais. Nazistas também amam, e sentem dor, e comem e vão ao
trabalho e, talvez, às vezes, escrevem sobre seus cotidianos.
Saber disso não resolve a questão
ou diminui o assombro. O que fazer com o outro?
E se ele tivesse sentado ao meu lado?
Eu, incomodada, teria
levantado para sentar-me em outro lugar (a não ser que o assombro e o medo me
paralisassem)?
Atitude correta? Não
seria o mesmo que eles, em regra, fazem, e que critico tanto? Segregação?
Como agir diante de alguém assim? O que significa no aqui, na
região onde eu moro, um nazista à plena luz do dia, sem medo de se mostrar? O
que alguém assim é capaz de fazer, o que alguém assim desperta dentro de nós?
Me pergunto e mantenho
em mente a assertiva de Deleuze, é preciso vigiar o fascista em nós. Assim como
os matadores de aluguel, os fascistas então mais perto do que imaginamos. Às
vezes, eles se sentam próximo a você no ônibus, outras vezes, é só examinar o
espelho.
On the road,
30 de maio de 2019.