Na praça relativamente cheia,
sentada, para ocupar o tempo ela fuma. Santos Andrade: de um lado um prédio
histórico imponente, é a Universidade, de outro vendedores ambulantes,
transeuntes que passam com pressa, no movimento-formiga do dia a dia. Ela senta
e olha pra dentro. O excesso de informações sonoras e visuais impede. De
repente escuta: - vô pedi cigarro praquela moça! Virou seu rosto, sentada,
muda, fumando e escutando.
- Moça vim pedir um cigarro
procê. Ele se ajoelha, como se pedisse perdão e não cigarro, ela diz que não
precisa, ele diz - Precisa sim, que é pra nois mostra quem a gente é. Ela dá o
cigarro, pergunta se tem isqueiro, mas o cigarro é pra depois. Ele levante,
sujo, maltrapilho, com grandes olhos esbugalhados e o cabelo amassado embaixo
de um boné, mas isso, dela, nem chama atenção. Ela olha sem olhar pro volume
extra na calça, ele tá com uma ereção. E ela sentada ali, na frente dele,
querendo olhar pra dentro e olhando e escutando aquilo As pessoas em seu
movimento-formiga passam, olham com desconfiança pra ele, voltam o olhar pra
ela, mas seguem em seu movimento-formiga. Ninguém se importa?
Ele continua falando,
descontínuo, viciado, usa alguma coisa, provavelmente crack, mas ela pensa, os
dentes não estão tão ruins, se fosse crack, estariam piores e ela não consegue
olhar os olhos esbugalhados e ele, todo descontínuo conta sua história pra ela,
que não é que não queira ouvir, só queria ocupar o tempo, já disse, olhando pra
dentro. Ajoelhado pra pedir perdão, pedir cigarro, por ser viciado, até achou
uma ponta de cigarro de maconha no chão e fala que aquilo é do cão, do diabo,
fala que o homem é bicho, diz que não existe esperança, só vingança, como se
falasse no juízo final. Do pouco contínuo que disse: teve a prima morta por
dívida do vício, seus olhos esbugalhados soltavam mais ainda da órbita ao dizer
isso, era de menor, não tinha nada haver com aquilo. E ele ia se vingar. Ela
lembra de Faroeste Cabloco, olha pra boca dele pra não olha no olho, mas a boca
também parece inflamada, e a saliva começa a juntar nos cantos: raiva falada.
Ele ia se vingar, porque a vingança é o que existe. E falou de um traficante
que teve as pernas e os braços cortados por dois usuários que tinham dívidas.
Era vingança desse tipo, porque morte matada se paga com morte matada.
Não para de falar e ela não
para de ficar muda. Seu cigarro acaba e ela quer sair dalí, permanece imóvel,
com medo do bicho-homem que não quis ser formiga. Ele também parecia estátua,
só sua boca mexia, e a saliva que acumulava. As vezes ele se balançava,
balançava os braços e continuava olhando fixo pra ela, com os olhos enormes e
inflamados. Ela pensa que não pode se mexer, pensa se o medo que sente é real
ou se ele só precisa contar sua história, que não tem ninguém pra ouvir. Ela ouve.
Ouve e lembra do medo do homem, na figura de tanto homem que conheceu, medo do
homem-pai, do homem-amante, do homem-que-fingia-ser-amigo. O medo dela não era
dele. Era do homem-bicho. Do homem que tem só abismo no olho, só raiva
nos dentes e aquele dalí provavelmente tinha o estomago também vazio e a alma,
se alma ainda tinha, carente de amor. Fica pensando será que algo nela atraiu
ele? E se ela fosse homem, teria menos medo? E se ele fosse mulher? Teria mesmo
medo? Será que ele teria a mesma raiva? Será que amanhã ainda estará vivo?
E a raiva no lugar da fala e a
postura que pede perdão não combinam. Ele sabe que é desgraçado, na cabeça dele
já fez mal e não merece atenção, mas alí ele tento e teve, seja por medo ou por
falta de opção de quem tinha que matar o tempo mas teve mesmo o tempo
congelado.
No meio da fala corte abrupto -
então tá bom moça, vo lá, apontando pro lado direito e saí em linha reta, passo
forte e olho no vazio. Quem sabe olhando pra dentro. Ela vira a cabeça, segue
os passos dele, levanta e tem que ir pra mesma direção que ele. Anda devagar
que ele anda rápido. Ambos vão embora e ela olha pra dentro e só vê o olho
dele, abismo dentro de abismo.