terça-feira, 19 de julho de 2016

Poema-Pássaro

Gosto do som das asas dos pombos
Sim ,eu sei - são os pássaros mais ruidosos,
mais desprezíveis,
mais que galinhas...

Mas,
com eles,
a experiência do voo
é mais verossímil.

Com as pombas,
tenho imagem,
vejo a dinâmica e,
tenho a sensação do som.

Sentir é sempre mais verdade que ver.

Com os pombos
sinto o voar,
sinto o vento que perpassa penas,
e o vento é toda uma arte de sentir.

Pombos e também sabiás,
e também rouxinóis, beija-flores,
corvos e bem-te-vis,
o diriam se pudessem.

E se pudesse, falar, falariam:
pobre homem,
ter linguagem e não ter voo.
Está preso na própria palavra!
...foi com ela
que inventou a liberdade.

sábado, 25 de junho de 2016

Desde muito cedo
vivi entrouxada nos livros.

Hoje ouço mais o apelo da vida,
e vivo
entrouxada nela.

domingo, 12 de junho de 2016

Conversa furada entre amiginhos.

No tribunal pós-moderno da inquisição, os juízes Donald Trump e Bolsonaro conversavam a respeito de relacionamentos gays:

quaestio facti: esse amor existe?
quaestio iuris: esse amor é licito?

Silogismo básico:

Premissa maior: Só humanos podem amar.
Premissa menor: Gays não são humanos.
Conclusão: Logo, gays não podem amar.

quaestio facti: não é amor.
quaestio iuris: isso é ilícito.


Segue-se outro silogismo:

Premissa maior: Gays não são humanos.
Premissa menor: Só é ilícito matar humanos.
Conclusão: Logo, matar gays não é ilícito.

A conversa termina com risadas: "esse Omar Mateen, ah.. que homem!, deveria ser glorificado hein?"

domingo, 5 de junho de 2016

Às experiências vividas e ao arquétipo da mulher-selvagem

(ou Balanço,
ou Waking life
ou Poema-prosa)


Ah doce, inconsistente e precipitada,
uma alma cheia de vísceras
e agora,
diante de um amor abortado
e outro
que apesar falência múltipla pela idade,
outros
insistem em manipular
como se pulsasse outra coisa que não
desespero.

Entre inúmeros acontecimentos
acordou,
cheia de um horror zombeteiro,
de um cansaço plácido,
é que despertou de outro modo, com outros olhos
– o demônio lhe esgueirou-se à noite.
Depois de muito tempo
enfrentando o olhar retornado do próprio abismo,
o aborto daquele amor
estremeceu
terras estrangeiras, esquecidas
– reconciliou-se.
Não sem dor, não sem o rasgar da carne,
não sem o ruir de um sonho breve.

Mas o sonho,
talvez ela dissesse,
é pra ser rasgado e a carne para ser breve.
E a vida no meio disso,
a vida grita, esbraveja e luta.
Pois é Drummond
a “vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia”,
não importa quantos espíritos negativos desejem,
falem,
velem o mal,
ela é muito mais do que a dor,
a organização perfeita e estéril de um armário de livros,
a vida é o riso,
seja de escárnio ou de bem-aventurança.
A vida é o precipitar-se da alma,
é o correr risco. 

Ela não só reconciliou-se,
fez um pacto diabólico
com o próprio abismo:
“aceito-te enfim, mas permita-me sempre
estender à mão para a terra mais lamacenta de seu ventre.”

Não posso dizer se o abismo concordou,
mas o jorrar do sangue voltou,
intenso..
intenso...
intenso....
e está vindo inundar palavras
e letras de um vermelho
rubro, liberto:
uma escrita que tento aqui recriar, hesitante,
trêmulo
porque aquela mulher,
que parece serenidade,
lua,
mel
e orvalho,
hoje é mulher-selva, selvagem, densa.

Olho-a daqui,
como se pudesse olhar o êxtase da intensidade,
como se pudesse personificá-lo,
mas sem mistificação,
preenchido de um orgulho ilustre.

E, se pudesse me ver, ainda mais este instante
diria: "é que toda morte é um desobrigar-se."

Sem mistificação, não sem mistério!?

Permaneço confuso e embrigado...

sexta-feira, 4 de março de 2016


Repetir incansavelmente Raduan como um se fosse um mantra, uma relevação percebida por um ṛṣis alojado em minha alma: ... o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis
O tempo, porém água, é incansavelmente doce. Para aquele que obstinadamente saiba das insídias da vida, colherá os frutos...


... o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis.

(Escrito em algum dia quente deste janeiro passado, doce e leve, malgrado os agouros desse verão que se esvanece entre fevereiro e março... 
 Essa vida insidiosa requer coragem deveras, e seus meandros não são para aqueles que carecem desta virtude, para aqueles que não saibam ou não consigam aguentar o peso da verdade, por mais controversa que esta mesma possa ser. Até para ser Judas é preciso enfrentá-la, caso contrário, só caberá a fuga, a quem os frutos serão amargos e pungidos...)

terça-feira, 1 de março de 2016

E eu, que sempre procurei seu olhar sincero - só o vi de relance, na bruna da noite, quando não era direcionado a mim, mas ao seu próprio abismo - nem no adeus percebi... Nem no adeus tive a chance de resguardar seus segredos no fundo dos meus olhos...

(29 de fevereiro de 2016)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Às vezes sinto as palavras como se fossem as únicas coisas das quais realmente disponho, mas desfrutá-las é tornar pesado a melhor parte. É um poder que acontece e deixa os sentimentos com gosto ocre e cheiro acinzentado, porque pintados de razão.

Por este juízo, é preciso entender os olhos, meus caros...

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Uma paixão ao primeiro som

(ou A serena revolta dos brasileiros ou Investidas na última flor do Lácio)


Aliet era ainda muito jovem quando se apaixonou pela primeira vez. Era uma adolescente holandesa a dominar o inglês e o neerlandês, tendo aulas de francês, já almejando ser uma grande linguista, "entendedora" das mais vastas literaturas mundiais.Sua primeira paixão, quase platônica assim, não foi por um lindo rapaz, nem por qualquer outra moça, nem seus professores, ou primos ou um lindo cantor ou jogador de futebol. Aliet se apaixonou pelo português. 
Em um café, certa tarde, um rapaz tímido, de olhos verdes e pele morena, recitou um poema desconhecido em uma língua desconhecida. Sem entender uma só palavra, Aliet chorou as lágrimas mais emocionadas de sua vida. O som das palavras ditas invadiam todo o seu corpo, fazendo-a estremecer, eram todas tão suaves, a pronúncia era tão límpida. O francês, nem muito menos o italiano eram o idioma dos apaixonados. Era aquela língua que chegou desconhecida, sem se apresentar, com toda a sua força, beleza e ternura. 
Sem poder conter-se, foi atrás do jovem trovador, perguntar-lhe que língua era aquela, que parecia ser o idioma dos deuses e descobrindo o português logo tratou de transferir seu amor ao jovem, que se chamava João: 
- Portuguese is the language spoken in Portugual, is not it?
- Yes, but the Portuguese is also spoken in Brazil and some African countries - teve como resposta. 
Pensativa, tomou conhecimento nesta tarde, também, da sua ignorância, com este idioma era um novo mundo que se abria a sua frente e ela ansiava ardentemente saber mais sobre ele. 
João, então, era um brasileiro residente em Portugal, aquele que lhe contou sobre os poetas dos dois países, sobre as culturas, a história e a gastronomia. Aliet não queria mais saber do "je sui Aliet", mas sim desse idioma que inventou a saudade e não pensou duas vezes em trocar as aulas de francês para português.
Sofreu com o relutância dos pais, sofreu com esta última flor do Lácio, complicada e traiçoeira. 
E o tempo passou, João foi embora com a primeira desilusão amorosa, mas a paixão só crescia, e ela desejava visitar Portugal, Brasil, Moçambique, Cabo Verde, Timor Leste, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe e, sem esquecer, a Angola. E eram tantos países para visitar, tantas culturas diferentes. Tantas novas paixões. 
Com Portugal, reconheceu seu poeta favorito: Fernando Pessoa e jurou poder comer pastéis de belém com o vinho do porto todos os dias. Com Moçambique se apaixonou por Mia Couto, seus poemas e contos fantásticos e com Cabo Verde ouviu Cesária Évora, se encontrou nas mornas e sentiu sodade. Tanto mais para se falar que aqui não cabe, mas seu encanto, a menina de seus olhos era o Brasil e seu samba e sua simpatia, o Brasil de Caetano, de Drummond, o Brasil dos olhos de ressaca de Capitu. 
Aos trinta e cinco anos Aliet, realmente, virou uma linguista - especializada em língua portuguesa -, não tinha visitado nem Timor Leste e nem tantos outros países e sem dúvida já falava muito bem o idioma, apesar de esquecer palavras como "cunhado" e "travesseiro". Ela escolheu o Brasil como sua casa. E essa escolha veio com o incomodo que sentia ao constatar que sua paixão tinha um defeito: os portugueses falavam como se suas amígdalas fossem gigantes! E em todos os oito países era assim, exceto o Brasil, aqui todos os cantos eram limpos, claros e excepcionais. Como se, silenciosamente negassem apenas essa herança da colonização, quase um novo idioma.
Ficou, amou o Rio, a Bahia e também o Rio Grande gaúcho, amava ainda mais ver suas filhas voltarem da escola e chamarem mamãe, ela não era mommy nem mama, era simplesmente mamãe. Mas o melhor, ah... o melhor, era dizer sua palavra favorita, palavra que só os brasileiros conheciam. Com ela sempre recebia suas filhas. É que na casa de Aliet tinha cafuné todo dia.