domingo, 23 de novembro de 2014

Fui a Curitiba e senti as quatro estações de Vivaldi, vi chaves nas calçadas do centro, passei por uma cigana misteriosa jurando um futuro bom na palma de minha mão, e até mesmo, no alto de um prédio, vi  uma estátua de águia, com duas cabeças, 
Mas fiquei triste, é que passei por um ônibus que todos os dias vai à Solitude. 

sábado, 8 de novembro de 2014

"Ode" ao fim de um ciclo

 Momento de quando as clareiras de um riso luminoso, de um devir cheio de ânsias e sofrências, impetuoso por sentir ao intermédio da eternidade, o magnetismo dos gestos, a suavidade do olhar e calmaria de todas as presenças e ausências se esvanece, na sombra da dúvida.
Ah Tempo, suas águas sempre foram inflamáveis, mas da dor, a agudez só resta a lembrança, porque minhas convicções são a soma das piadas mal contadas pelo palhado que, desesperado, já não sabe mais sorrir. Resisti o quanto pude, mas as feridas que o senhor reinou em pungir-me, agora cicatrizam em dura pele, na qual os gestos magnéticos não alcançam mais a seiva. Resisti, mas o olhar agora é mais dissimulado que Capitu – que jaz onde a inocência teima. Resisti, mas viajar entre extremos, subir aos céus e dar a cara na terra e mergulhar cego no breu do inferno, fez da clareira luminosa um sorriso de fogo.
Ah Tempo, será que de tanto inflamar-me o rio de sangue que corre em mim, serás capaz de restituir a credulidade perdida, sem que se faça apoiar na transcendência de uma fé inconteste e tão perigosa quanto o ceticismo cruel e patético? Apesar do amargor que não vejo escorrer, recuso igualar-me àquele que de tanto sentir o sangue arrebatado teve o coração tornado veredas e as palavras ornadas de ódio. Com um devir mais ferino que político, vago entre tantos outros que resistiram, igualmente, e caíram na armadilha do viver automático, à contrariar o Livro dos Contrários, a ordem é a mentira sob a qual o caos se esconde.
Ah Tempo, me conceda finalmente esta primeira dança, porque necessito da música ensandecida e da frieza aguda, porque, finalmente, se a honra me concederes, findo estará o prólogo de minha vida. 

domingo, 7 de setembro de 2014

Repetições de vida e morte

Acabo de passar ao lado de um cemitério “dos pobres” – porque até nisso o dinheiro, infelizmente, faz diferença – e só pude ver vida e resistência ali. Se, durante a vida os questionamentos sobre a morte não cessam e se multiplicam teorias sobre a sua natureza, é tão verdade que a vida se faz o pressuposto da morte. Tanta vida enterrada, debaixo de cruzes, grama, terra. Tanta vida por entre o ar e as ruas, por entre as pedras e as paredes. Tanta vida passada: dois bilhões de anos... e tanta vida jogada fora.

Faz-me pensar que a morte é um artifício humano, assim como os números e as medidas em geral, como a cultura e o sistema econômico, para fazer essa mesma vida suportável. O peso do inevitável e imprevisível nos assola. Precisamos e tememos a morte porque o furor da vida é tensão demasiada para nós.

Mas a vida nos becos, na sarjeta das madrugadas, nos malabares dos semáforos, nos latidos, nos voos, no cheiro de mato ou na falta de perfume apenas, assusta mais. Tememos mais ainda a liberdade dessa vida desvairada e desmedida – palavra que há quem diga que é mais uma invenção, assim como os números e as medidas em geral, como a cultura e o sistema econômico.

E eu, apenas desejo o sorriso largo da menina daqueles malabares loucos, desejo o correr desenfreado da criança no parque, o sexo do primeiro encontro, a voz do cantor de rua, os olhos de quem viu a morte e a liberdade daquele, e somente daquele que já teve a vida e a morte acorrentados à outrem.



E isso, é apenas uma repetição de mil palavras já ditas,

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Rabiscos de vida...

Antes de voltar para casa, já cansado da rotina, o homem sentou-se no banco da praça e relembrou a conversa da noite anterior: Ao dar boa noite para o filho, reparou que ele chorava. Perguntando-lhe o que havia ocorrido, o menino respondeu, com a simplicidade de ser criança "Pai, não consigo me lembrar direito do rosto da mamãe, eu vou esquecer dela??" Sem saber o que responder, o homem apenas lhe disse: "Dorme que passa, meu filho."
Mas tal desmemória não angustiava apenas a criança, tanto que Eduardo passou alguns minutos absorto em seus pensamentos, sem saber como encarar o filho. E, logo uma moça sentou ao seu lado - perguntou se ele estava bem. Desmoronou, desabafou, contou o ocorrido, sem mais perguntas, sem mais apresentações.
Na sua ingenuidade, a moça, contando com apenas 18 anos, respondeu que o problema não era tanto o esquecimento, mas a falta de memória: "Sabe, eu não conheci meu avô, mas meus pais sempre contaram histórias dele, como ele era amoroso comigo (e com todos), como me me pegava no colo quando bebê, a paz que ele trazia. E, eu acho que é por isso que eu sempre me senti perto dele, com muito amor. Talvez se você, a cada dia, falasse dela pra ele? Quem sabe a saudade diminuiria, tanto a dele, como a sua. Falar de alguém é uma maneira de estar próximo dessa pessoa..."
Estupefato, Eduardo ergueu, pela primeira vez, a cabeça, olhou para a moça e agradeceu dizendo-lhe que ela deveria ser poeta. Com uma risada leve e distante a moça disse que era apenas uma estudante de história "... que há muito não escrevia, que há muito não sentia."
"Sem sentimento? Se as suas palavras são ausentes disso, eu realmente estou perdendo a cabeça!" Dito isto ele levantou, com mais ânimo e sempre com dificuldade em palavras, sorriu brevemente e desejou que ela voltasse a sentir.

***

Passado semana, a angústia de Eduardo sumiu, dando lugar a outro sentimento, meio pesado, mas sem dúvida com um objeto mais leve: àquela moça. Precisava encontrá-la, dizer algo, agradecer melhor, retribuir, fazer algo, enfim. Tanto, mais tanto, que passou um dia inteiro no mesmo banco, da mesma praça, até, por um quase milagre, avistá-la. Dando conta de quem era, a moça parou e Eduardo estendeu-lhe um envelope: "Abra! É um presente."
Com um certo receio, mais muito curiosa a moça abriu o envelope. Era uma pequena carta, do filho daquele homem que afoito estava a sua frente, tão diferente daquele dia. Humildemente o menino agradecia: "Obrigado moça da história, graças à você estou mais perto da mamãe, e do papai também. Você deve ser um anjo".
A moça, Mariana, conteve o choro, e Eduardo lhe disse que precisava retribuir a ajuda, e que entregar o que o filho escreveu era o meio mais sincero. Não houve abraço, não houve perguntas, nem apresentações. Cada um seguiu seu caminho, o homem sorria, a moça queria escrever e pensava " ter do que lembrar é sempre a dor mais necessária."

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Água pra lavar lágrimas

Por Bruno Brandi Lichacovski

A gota, era só uma gota, que um dia ascendeu aos céus, nascida do vapor, do frio e do calor, forjada nas nuvens, tecida nas alturas. Ela escorria por entre montes acinzentados de massa intangível, precipitava para o momento que teria que se jogar, saltar corajosamente de encontro à gravidade. E enquanto ela cai, nós olhamos o céu: "será que chove?" - diz a senhora de meia-idade ao taxista que por sua vez resmunga (já pensando no passageiro que teria que buscar dali a 15 minutos): "tá com cara".
Impassivelmente os dois se distanciam sem saber que gostavam de ver os pássaros comendo farelos de lixo na praça sempre que se pegavam desatentos na rua. 
Ela desceu, pagou a corrida (claro que pensando 3 vezes no preço da passagem do ônibus e do quanto economizaria se não fosse tão preguiçosa e ranzinza), correu, quando os pingos começaram a se quebrar contra o chão duro do asfalto e do concreto. À medida que os pedaços de água iam se desfazendo em poças amorfas ela ia estendendo os braços, abraçou os cachos negros do sobrinho que corria para o fora do prédio marrom desbotado: "Tia!" ... e prosseguiu: "Aprendi a escrever a letra F! É! A primeira do seu nome!" - "Que bom! Já sabe escrever! Um dia ainda será um grande jornalista.". - "O quê é um jornalista?" - "Alguém que pinta a vida e o mundo com as letras, cada um ao seu estilo.". ...
Um silêncio irrompe o amor trocado.
Em seguida um trovão rompante rasga o céu, o estrondo vem em menos de três segundos, quando se deram conta estavam já começando a se encharcar. 
Poucas quadras ali abaixo o taxista abastecia seu veículo enquanto fumava um cigarro. Parecia inquieto, afinal chuva atrapalha o serviço numa cidade média. Já não era moço para passar o dia inteiro na rua e também não tinha o suficiente para deixar de trabalhar. Tomou seu café, lançou a bituca longe, que escorreu com o fluxo d'água para dentro de um bueiro, e retornava ao seu ponto cotidiano - o seu cliente anterior havia desmarcado o futebol com os amigos, não iria mais precisar do táxi (não que o motorista soubesse disso) - avistou uma mulher magra como uma garça e de trejeitos delicados, mas rápidos e precisos, segurando entre os braços uma criança de cabelo encaracolado, preto, dormindo suavemente ao som da chuva. Dirigiam-se provavelmente ao Shopping, para sair com uma criança num dia chuvoso. Ele contemplou os dois absorto em sua distância, enquanto a gota deslizava pelo vidro.
Só então lembrou que talvez fizesse muito tempo que estara embriagado  pelo trabalho, pela dor de permanecer todo o dia só. Deixando as pessoas e as pessoas o deixando. Tudo por dinheiro.
O quê dessa vida se leva? Pensou alto... e embora distante, sem a mínima chance de haver escutado, a mulher volteou a cabeça em sua direção olhou-o e acabou por reconhecê-lo. Lançou um gentil sorriso enquanto carregava o menino - que profundamente ignorava qualquer coisa que não fosse a delicadeza de seu sono.
O homem resolveu sair do carro, correu para ajudar a pobre senhora de meia-idade que tinha no colo sua bolsa, uma criança de já uns 6 oito anos além de um guarda-chuvas. Iria oferecer carona para ambos, mas primeiro ajudar a mulher a transportar tudo até o carro - essa ideia havia despertado nele não só um sentimento de bondade e amor fraternal pela senhora, mas também abalara o que ele não acreditava ser capaz de sentir. Após as 3 primeiras passadas vigorosas em direção ao casal de idade  antagônica um pulsar violento o arrebata pelo peito, as pupilas encolhem ele para estarrecido: um ônibus descontrolado atinge a senhora e a criança... o sangue mistura-se com a água, lavam-se as vidas, e a gota... virará vapor, dançará nas nuvens e um dia, quem sabe, retornará para limpar o rosto choroso, e o coração amargurado do pobre homem que trabalhou todos os dias da sua vida que pode.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Quando Carlos era criança, ele gostava de gritar. 
Ninguém entendia o pequeno Carlos, o achavam retardado. 
Mas também.... 
Ninguém ouvia os sons que ele o tempo todo escutava. O som dos carros. Das buzinas. Dos acidentes... O som dos passos, das gargalhadas no corredor. Do giz extinguindo-se no quadro. O som de mil respirações juntas. Dos latidos dos cachorros da vizinhança... Da água, que faz som no chuveiro, na torneira, nas garrafas e nas chuvas. O som da mão coçando a cabeça e até das mastigadas durante o almoço. 
Só Carlos ouvia. Incessantemente, os sons que estamos acostumados a esquecer. 
E é por isso que Carlos gritava, ele queria a harmonia disso tudo. E também queria emitir sons, mas queria o som mais potente. Queria esquecer toda essa bagunça de sons. Então ele gritava. E gritava o mais alto que podia. 
Hoje Carlos é regente de orquestra. Com os ouvidos em harmonia, ele grita com as mãos!

(19 de outubro de 2013)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Pequena alegria do dia: ouvir o som dos pássaros ao amanhecer, bem-ti-vis, sabiás, joões-de-barro, saís-azuis, e até os pardaizinhos...

Pequena tristeza do dia: ver um idoso tentar atravessar a rua movimentada, enquanto pede para que o ônibus o espere, em vão...

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O Sufocante Milagre do Esquecimento


Uma das piores sensações do mundo: a do pós-piloto automático. Quando você se dá conta que fez uma porção de coisas, das quais não há o mínimo registro em sua memória. Nada é mais angustiante que o esquecimento.
O piloto automático é o escape para uma rotina saturada de memórias inúteis. É como se parte do meu cérebro tivesse sido sugado por um buraco negro, lá para a zona fantasma do esquecimento. Como se o meu passado fosse um corpo, e lhe faltasse o braço inteiro.

Que foi que eu fiz, José?

Da ultima vez, era dia de viagem, acordei. Cinco horas da manhã. Terminei de arrumar as malas, a cama, troquei a roupa, pus as malas no carro, afaguei o cachorro, me despedi de meu pai, entrei no ônibus e dormi.
Acordei ás oito horas.
E, minha memória se restringe ao despertar e arrumar a cama. Nada há de arquivado das cinco e dez às oito horas!!! E o pior, só a noite, quando cheguei no meu real destino (depois de dois ônibus, um avião e três Estados) é que me dei conta.
Desespero total.
Terei, eu, deixado de fazer algo importante? 
O afago no cão foi o suficiente para ganhar da sua insatisfação pela minha partida? Fui amável o suficiente com meu velho, que almoçará e jantará sozinho, sem conversas? 
Detalhes pequenos, mas que não indícios de algo maior. Um dia poderei esquecer as chaves,  o rosto de meu pai, o cheiro de meu amor...?
Tudo bem, Pope, você tem certa razão, o ato de esquecer tem seu certo brilho, mas não eterno. Cada memória acumulada pode abrir uma ferida no peito O  dia em que se foi humilhado, a primeira traição, a morte dos avós e depois dos pais - ou pior, dos filhos. A saudade dos amigos que moram longe, dos sabores da infância... Aquela memória de quando perdemos a inocência de uma vez por todas.
Mas o que seria de nós no completo esquecimento?
Felizes dos que lembram e, choram.