domingo, 12 de junho de 2016

Conversa furada entre amiginhos.

No tribunal pós-moderno da inquisição, os juízes Donald Trump e Bolsonaro conversavam a respeito de relacionamentos gays:

quaestio facti: esse amor existe?
quaestio iuris: esse amor é licito?

Silogismo básico:

Premissa maior: Só humanos podem amar.
Premissa menor: Gays não são humanos.
Conclusão: Logo, gays não podem amar.

quaestio facti: não é amor.
quaestio iuris: isso é ilícito.


Segue-se outro silogismo:

Premissa maior: Gays não são humanos.
Premissa menor: Só é ilícito matar humanos.
Conclusão: Logo, matar gays não é ilícito.

A conversa termina com risadas: "esse Omar Mateen, ah.. que homem!, deveria ser glorificado hein?"

domingo, 5 de junho de 2016

Às experiências vividas e ao arquétipo da mulher-selvagem

(ou Balanço,
ou Waking life
ou Poema-prosa)


Ah doce, inconsistente e precipitada,
uma alma cheia de vísceras
e agora,
diante de um amor abortado
e outro
que apesar falência múltipla pela idade,
outros
insistem em manipular
como se pulsasse outra coisa que não
desespero.

Entre inúmeros acontecimentos
acordou,
cheia de um horror zombeteiro,
de um cansaço plácido,
é que despertou de outro modo, com outros olhos
– o demônio lhe esgueirou-se à noite.
Depois de muito tempo
enfrentando o olhar retornado do próprio abismo,
o aborto daquele amor
estremeceu
terras estrangeiras, esquecidas
– reconciliou-se.
Não sem dor, não sem o rasgar da carne,
não sem o ruir de um sonho breve.

Mas o sonho,
talvez ela dissesse,
é pra ser rasgado e a carne para ser breve.
E a vida no meio disso,
a vida grita, esbraveja e luta.
Pois é Drummond
a “vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia”,
não importa quantos espíritos negativos desejem,
falem,
velem o mal,
ela é muito mais do que a dor,
a organização perfeita e estéril de um armário de livros,
a vida é o riso,
seja de escárnio ou de bem-aventurança.
A vida é o precipitar-se da alma,
é o correr risco. 

Ela não só reconciliou-se,
fez um pacto diabólico
com o próprio abismo:
“aceito-te enfim, mas permita-me sempre
estender à mão para a terra mais lamacenta de seu ventre.”

Não posso dizer se o abismo concordou,
mas o jorrar do sangue voltou,
intenso..
intenso...
intenso....
e está vindo inundar palavras
e letras de um vermelho
rubro, liberto:
uma escrita que tento aqui recriar, hesitante,
trêmulo
porque aquela mulher,
que parece serenidade,
lua,
mel
e orvalho,
hoje é mulher-selva, selvagem, densa.

Olho-a daqui,
como se pudesse olhar o êxtase da intensidade,
como se pudesse personificá-lo,
mas sem mistificação,
preenchido de um orgulho ilustre.

E, se pudesse me ver, ainda mais este instante
diria: "é que toda morte é um desobrigar-se."

Sem mistificação, não sem mistério!?

Permaneço confuso e embrigado...

sexta-feira, 4 de março de 2016


Repetir incansavelmente Raduan como um se fosse um mantra, uma relevação percebida por um ṛṣis alojado em minha alma: ... o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis
O tempo, porém água, é incansavelmente doce. Para aquele que obstinadamente saiba das insídias da vida, colherá os frutos...


... o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis.

(Escrito em algum dia quente deste janeiro passado, doce e leve, malgrado os agouros desse verão que se esvanece entre fevereiro e março... 
 Essa vida insidiosa requer coragem deveras, e seus meandros não são para aqueles que carecem desta virtude, para aqueles que não saibam ou não consigam aguentar o peso da verdade, por mais controversa que esta mesma possa ser. Até para ser Judas é preciso enfrentá-la, caso contrário, só caberá a fuga, a quem os frutos serão amargos e pungidos...)

terça-feira, 1 de março de 2016

E eu, que sempre procurei seu olhar sincero - só o vi de relance, na bruna da noite, quando não era direcionado a mim, mas ao seu próprio abismo - nem no adeus percebi... Nem no adeus tive a chance de resguardar seus segredos no fundo dos meus olhos...

(29 de fevereiro de 2016)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Às vezes sinto as palavras como se fossem as únicas coisas das quais realmente disponho, mas desfrutá-las é tornar pesado a melhor parte. É um poder que acontece e deixa os sentimentos com gosto ocre e cheiro acinzentado, porque pintados de razão.

Por este juízo, é preciso entender os olhos, meus caros...

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Uma paixão ao primeiro som

(ou A serena revolta dos brasileiros ou Investidas na última flor do Lácio)


Aliet era ainda muito jovem quando se apaixonou pela primeira vez. Era uma adolescente holandesa a dominar o inglês e o neerlandês, tendo aulas de francês, já almejando ser uma grande linguista, "entendedora" das mais vastas literaturas mundiais.Sua primeira paixão, quase platônica assim, não foi por um lindo rapaz, nem por qualquer outra moça, nem seus professores, ou primos ou um lindo cantor ou jogador de futebol. Aliet se apaixonou pelo português. 
Em um café, certa tarde, um rapaz tímido, de olhos verdes e pele morena, recitou um poema desconhecido em uma língua desconhecida. Sem entender uma só palavra, Aliet chorou as lágrimas mais emocionadas de sua vida. O som das palavras ditas invadiam todo o seu corpo, fazendo-a estremecer, eram todas tão suaves, a pronúncia era tão límpida. O francês, nem muito menos o italiano eram o idioma dos apaixonados. Era aquela língua que chegou desconhecida, sem se apresentar, com toda a sua força, beleza e ternura. 
Sem poder conter-se, foi atrás do jovem trovador, perguntar-lhe que língua era aquela, que parecia ser o idioma dos deuses e descobrindo o português logo tratou de transferir seu amor ao jovem, que se chamava João: 
- Portuguese is the language spoken in Portugual, is not it?
- Yes, but the Portuguese is also spoken in Brazil and some African countries - teve como resposta. 
Pensativa, tomou conhecimento nesta tarde, também, da sua ignorância, com este idioma era um novo mundo que se abria a sua frente e ela ansiava ardentemente saber mais sobre ele. 
João, então, era um brasileiro residente em Portugal, aquele que lhe contou sobre os poetas dos dois países, sobre as culturas, a história e a gastronomia. Aliet não queria mais saber do "je sui Aliet", mas sim desse idioma que inventou a saudade e não pensou duas vezes em trocar as aulas de francês para português.
Sofreu com o relutância dos pais, sofreu com esta última flor do Lácio, complicada e traiçoeira. 
E o tempo passou, João foi embora com a primeira desilusão amorosa, mas a paixão só crescia, e ela desejava visitar Portugal, Brasil, Moçambique, Cabo Verde, Timor Leste, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe e, sem esquecer, a Angola. E eram tantos países para visitar, tantas culturas diferentes. Tantas novas paixões. 
Com Portugal, reconheceu seu poeta favorito: Fernando Pessoa e jurou poder comer pastéis de belém com o vinho do porto todos os dias. Com Moçambique se apaixonou por Mia Couto, seus poemas e contos fantásticos e com Cabo Verde ouviu Cesária Évora, se encontrou nas mornas e sentiu sodade. Tanto mais para se falar que aqui não cabe, mas seu encanto, a menina de seus olhos era o Brasil e seu samba e sua simpatia, o Brasil de Caetano, de Drummond, o Brasil dos olhos de ressaca de Capitu. 
Aos trinta e cinco anos Aliet, realmente, virou uma linguista - especializada em língua portuguesa -, não tinha visitado nem Timor Leste e nem tantos outros países e sem dúvida já falava muito bem o idioma, apesar de esquecer palavras como "cunhado" e "travesseiro". Ela escolheu o Brasil como sua casa. E essa escolha veio com o incomodo que sentia ao constatar que sua paixão tinha um defeito: os portugueses falavam como se suas amígdalas fossem gigantes! E em todos os oito países era assim, exceto o Brasil, aqui todos os cantos eram limpos, claros e excepcionais. Como se, silenciosamente negassem apenas essa herança da colonização, quase um novo idioma.
Ficou, amou o Rio, a Bahia e também o Rio Grande gaúcho, amava ainda mais ver suas filhas voltarem da escola e chamarem mamãe, ela não era mommy nem mama, era simplesmente mamãe. Mas o melhor, ah... o melhor, era dizer sua palavra favorita, palavra que só os brasileiros conheciam. Com ela sempre recebia suas filhas. É que na casa de Aliet tinha cafuné todo dia.

domingo, 7 de junho de 2015

Rotina

Acordar. Sentimento de morte. Folia. Pelos e lambidas. Reclamações e café. Estalos de um andador. Televisão. Ensurdecimento. Sair. Passos, juntos, atrás. O cheiro do mato. E o chacoalhar das folhas no vento. Sentimento do mundo. Barro. Crianças que se maravilham. A volta, cansaço. Água. Mais água. Música. Comer. Ler. Descobrir um novo mundo. Querer fazer parte. Grades invisíveis. Querer solitude, sentir solidão. Reclamação. Sentimento de culpa. Choro e raiva. Resistência, sem luta. Azul e amarelo: o céu. Os patos no céu. Estrelas no céu. O cheiro do mato. Uma horta. Cachorros. Risadas desconhecidas. Uma criança que vêm. Comer, beber. Doces. Mais doces. A noite o samba. Ter companhia. Querer mais presenças, sentir solidão. Telefone. Adeus. A volta. Energia sugada. Ler. Novo mundo, de novo. A cabeça não para. Imaginação: não vem. Ilusão: não vem. Lucidez. Maldita lucidez. Sono não vem: malditos sonhos. Benditos sonhos. Sentimento de morte.

Acordar. Sentimento de morte. Folia. Pelos e lambidas. Reclamações e café. Estalos de um andador. Televisão. Ensurdecimento. Arte. Comer. Água que cai: não é cachoeira, não é chuva. Música. Ler. Novo mundo, não tão novo. Solidão. Espera. Espera. Espera mais um pouco. Uma hora a vida sorri. Nunca sorriu, não um sorriso cheio. O Fora é realmente o Fora. Não há dobra, não há arte. Não há presença. Espaços cheios de mais, passos vazios de mais. Reclamação. Falar de si. Falar do outro. Reclamação!! Silêncio?? O importante debaixo do tapete. O tapete cada vez mais grosso. Sou um estrangeiro. Não falamos a mesma língua. Não falo língua nenhuma. Não ter língua. Não ter pátria. Não fazer parte. Pertencimento ao outro. Lucidez, maldita lucidez. Sentimento de morte. Comer. Fechado, fechado. Tudo errado. Rápido. Mais rápido. Mais rápido, velocidade da luz. Distante, a cabeça não para. Distante, Longínquo. Sonhos. Aonde? Sentimento do mundo.

Acordar. Sentimento de morte. Acordar pra quê? Folia. Pelos e lambidas. Reclamações e café. Estalos de um andador. Televisão. Ensurdecimento. Reclamação. Reclamação. Falar do outro. Querer solitude. Ler, ler mais. Música. Dormir. Masturbação, quem sabe. Sem privacidade. Com privação. Grades que não se veem. Tornar o visível oculto. Enunciados. O que é liberdade. O amor é liberdade. É escolher as escolhas. Essa não é uma escolha. O sentimento não é uma escolha. A morte não é uma escolha. (Tem certeza?). A vida não é uma escolha. Água que cai. Banho. Força. Sou forte. Músculos. Meus músculos. Meus pelos. Meu corpo. Sua-minha vida. Minha vida!!!! Contra-ataque. Força. Pára. Não dá. Culpa, mais culpa. Choro. Sentimento de morte. Cicatrizes na pele, esperando por mais. Espera. Espera. Nada muda. Música. Alegria. Sentimento...

domingo, 24 de maio de 2015

O ainda não e o não mais

No café, dois amigos conversavam. Aparentemente a respeito da deterioração de uma relação:
- Você não gosta de mudanças, não é?
- Não é isto, gosto de mudanças, o que não significa que não possa sofrer com elas. O que não suporto é esse interstício entre o velho e o novo. Essa sensação de vida suspensa, onde nada realmente acontece. O mundo parado e minha cabeça girando em velocidade ímpar. Os pensamentos não fluem, o novo não é cristalino. Não suporto a vida des-estentida e ...o passo amargo do caos. Não sou uma pessoa cômoda, sou uma pessoa de planos.
- Mas a vida é caos, meu caro.
- O problema não é o caos. É essa dobra do tempo. É essa situação, essa sensação de quando a calmaria já não existe e o caos ainda não se instalou.
- Então, se puder, antecipe o caos.
(Sorrisos...)
(23 de maio de 2015)
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Dedilhando imagens

Sinto saudade. Saudade das cortinas fechadas e das luzes, onde tudo era sépia, onde seu corpo se movia em um jogo de luz e sombra, escondendo-se e, em cada cena, a plenitude de suas feições. Saudade do seu espelho quebrado, onde sua imagem refletida paralisava-se em minha memória. Nele, o seu cabelo enrolado caía pelas costas e modelava sua cintura, enquanto seu sorriso inclinava-se para a direita. Nele, seus olhos refletiam-se, infinitamente e era a, sua pela, macia.
Um espelho que fascinava-me por mostrar sua silhueta em ângulos novos e como o rosa de sua pela era alaranjado, quando a luz refletia em seus mamilos e as dobras novas que se formavam nas mais diversas posições e como seu quadril transfigurava-se em mil tamanhos, ao bel prazer.
Invejo-o, pois ele desconhece censura e nele, o cheio docemente amargo de sua pela está impregnado. Só ele sabe como põe as meias, sentada na cadeira, como odeias o sutiã e só ele sabe como você movimenta-se na pura ausência de companhia.
É ele que conhece o seu rubor e as suas lágrimas, e o tom de sua voz quando cantas, sensores que meus olhos nunca captaram. É só ele tem o dom de vê-las pelos próprios olhos.
Quem me dera um dia quebrar este espelho e apagar todas as luzes. Nunca mais suas nuances seriam paralisadas e o espectro de cores da sua pele jamais seria percebido. Amaldiçoaria-a ao desconhecimento de si.

Mas a este papel renego. Mil vezes renego. Já que mesmo depois da morte, seu reflexo nele, jamais se apagaria. Em uma existência infinita, a memória do seu perfil, e dos seus gestos seria preservada. Só a natureza pode dar-te o esquecimento. Já eu, busco o reflexo de ti, em cada parte do meu ser, sem esquecer e sem, contudo, poder lembrar.

(20 de maio de 2015)