quinta-feira, 23 de julho de 2020

As mulheres da família

As mulheres da família
são belas, vaidosas, esbeltas.
Mulheres fortes.
Mas são mulheres que escondem,
até de si mesmas,
a dor, o sonho perdido, a "honra manchada",
o sono perdido
a violência, o rechaço, o silêncio.

As mulheres da família escondem suas tristezas.


As tristezas das mulheres da família vazam,
dores de amores
dores de amargores.
Aquela faculdade não cursada,
o marido não escolhido ou bandido bêbado agressivo,
o trabalho abandonado.


As tristezas vazam nos suspiros,
na hora do café e no saudosismo dos dias dos mortos.
As tristezas vazam nos penteados,
nos sapatos,
no sofá.


As tristezas das mulheres da família
são os rancores escondidos.
Contra pai, mãe, sogra.
Contra marido, filho.
Contra deus.


Elas são frágeis,
barragem, napalm, polônio.
E são fortes,
palmeiras, molas, elásticos.

Eterna contagem regressiva,
sempre adiada. 

As tristezas das mulheres da família,
seus rancores,
são de deus,
talvez por faltar-lhes a deusa,
por faltar-lhes certeza de serem mulheres de valia
e não apenas mulheres de família.


Que deusas me permitam não ser como as mulheres da família.
Que as minhas tristezas vazem em canto, poesia e choro,
que elas não se cristalizem no rancor da vó, da mãe e da tia,
pois vazam doloridas, ferinas, entrecortadas no entre-palavras.


Que as minhas tristezas sejam sempre amadas.

domingo, 6 de outubro de 2019

Apenas um texto sobre morte


Minha avó morreu. Dia 05 de outubro de 2019, aos 93 anos. Um dia antes do seu aniversário de casamento com meu avô, que já se foi há 26 anos. Para alguns eles se casaram de novo no céu.
Convivi com ela, diariamente, minha vida inteira: mesma casa. E minha avó morreu com um suspiro e os olhos fechados. Ela descansou. E descansou apenas depois de perder o movimento das pernas, depois dos braços, depois de ficar surda e perder a fala, depois de três AVC's, depois de perder a capacidade de comer e precisar de sonda gástrica, depois de algumas pneumonias e precisar de oxigênio constante. Depois de muitos sustos, dias e dias no hospital. Depois de longos cinco anos sofrendo. Ninguém deveria viver assim, ninguém deveria viver tanto.
Os últimos anos foram difíceis, sempre foi. A imagem de uma avó é sempre a de uma mulher doce e sábia. Ela só tinha a segunda qualidade. Minha avó não sabia demonstrar afeto, ao menos não com declarações de amor, abraços ou beijos. Era fechada, ríspida, briguenta. Era como um remédio forte, bem amarga, mas necessária.
Ela já foi uma mulher jovem, bonita e apaixonada, mas essa eu só conheci em fotos. A Estácia que sempre chamei de vó era aquela que soube ser boa esposa, que criou cinco filhos, que tinha punhos de ferro. Muitas vezes era rabugenta e reclamona, acho que foi o que aprendeu na vida. Dificilmente algo estava bom para ela. Ela carregava essa amargura que só quem sofreu muito sabe, e que a gente só consegue espiar. Mãe de cinco filhos, avó de oito netos, e outros tantos bisnetos. Família nunca é fácil, ela precisava ser assim, e precisou mais ainda quando meu avô morreu.
Mas, como disse, era remédio forte, amarga e necessária. Soube ser matriarca como poucas vezes vi. Era necessária, essencial, de tantas formas, soube amar de tantas outras. Poucas pessoas sabem, mas foi minha avó que pagou boa parte dos meus estudos (se não fosse ela, se fossem só colégios públicos, quem sabe se seria advogada, professora?) e boa parte do meu tratamento ortodôntico, que me ensinou, sem querer ensinar, educação financeira. Foi minha avó que me fez gostar de plantas dentro de casa, e do silêncio, e da organização... É da comida dela que vou sentir falta para sempre. Ela socorreu financeiramente filhos e netos, sempre. Era seu jeito de cuidar, mesmo que às vezes exigisse alguma contrapartida disso. Mesmo que às vezes parecesse não amar ninguém.
É o que uma mulher da idade dela, do tempo dela, poderia fazer. Filha de imigrantes, sua infância foi trabalho e penúria. Quase não estudou, mas não se contentava em ser apenas dona de casa, ela trabalhava, costurava e até mesmo criava roupas. É o que ela pode fazer, já que poucas vezes na vida pode de fato, pensar em si mesma. É o que uma mulher como ela poderia fazer, é o que uma mulher como ela poderia ser.
Só que ela não foi só isso, foi muito mais e não cabe aqui. Minha avó era feminista, era resistente, mesmo sem saber! E eu só queria dizer que minha avó foi a mulher que, polaca e de olhos azuis, casou-se com um negro – o primeiro que muitos em sua colônia viram, em um Brasil muito mais racista que o de hoje. Ela trabalhava e tinha seu próprio dinheiro, em meio a uma sociedade na qual isso não era visto com bons olhos. Minha avó para qualquer um , talvez, pareceria uma velha 
solitária, ranzinza, conservadora. Ela era tudo isso sim, mas também era pra frentex, era um mulherão da porra!

Ninguém deveria demorar tanto para morrer como ela demorou. Ninguém deveria sofrer tanto. Ninguém deveria viver tanto e não entendo quem deseja isso para si.
E o mundo não deveria exigir de mulher nenhuma ser tão forte como minha avó era. Foi o mundo exigiu que ela fosse remédio amargo.

Obrigada por ter sido sempre assim, vó, por ter feito o seu melhor. Que eu saiba honrar seu legado!

quarta-feira, 12 de junho de 2019

A mão e o homem (Crônicas de uma trabalhadora pendular I)


Sábado passado, estava eu, mais uma vez, voltando de União para Ponta Grossa, pequenina de cansaço em um estado parcial de vivicitude, como o stand by das televisões e outros aparelhos eletrônicos. Era como se metade de mim estivesse no sono e a outra na realidade – o balanço do ônibus induz o sono que, junto com o cansaço, bate forte e faz as pálpebras pesarem toneladas. No entanto, sono frágil e incerto – insônia e ansiedade sempre aparecem para dar um olá, me lembrando de que ainda estão aqui. Mas o certo é que nesse estado de semi-vigília ou semi-sono, eu fiquei entre cochilos e assombros com as paradas, captando poucas informações a respeito da realidade do ônibus que me cercava.
No entanto, ao acordar de um cochilo, provavelmente pelo barulho que o ônibus fez ao passar por uma estrada malacabada, abri os olhos, taciturna, desconcertada e vi a mão. Não foi um homem e sua mão que vi primeiro, mas sim a mão e seu homem. Uma mão bruta, velha, tatuada, não acreditei no que meus olhos estavam captando (depois de captar quase nada ao longo da viagem)! Não era uma mão qualquer, era uma mão tatuada: suástica nazista. Acordei acordada! O sono sumiu! Fiquei alerta como um cão de caça.  Misto de inquietude, assombro e um desejo indiscreto de saber mais. 
Passei, um tanto quanto indiscreta mesmo, a examinar o homem que aquela tatuagem, que aquela mão portava. Nada demais, não era um jovem skinhead neonazista, não tinha nenhuma outra qualidade física que saltasse aos olhos. Era apenas um senhor de uns 70 anos, pele clara, mas judiada, olhos claros.
Talvez a jaqueta de couro pudesse significar algo, talvez o boné. Mas, nada, nada, era tão perturbador quanto aquela mão. Talvez, no mais, a idade – tanto da tatuagem quanto do senhor – fosse o que assombrasse demais. Se fosse um jovem, talvez nem tudo estivesse perdido; a maioria de nós é extremamente estúpido quando jovem e, quem sabe eu ainda o seja, já que não posso me arrogar a ideia de que sou velha (seria outra estupidez). Mas não, era um homem velho com uma tatuagem velha, tatuagem que há anos figurava naquela mão, explícita, sem maiores problemas, anunciando para o mundo que seu portador, muito provável, consegue desejar a morte, é permeado por um ódio indecente.
Esse misto de inquietude, assombro e desejo indiscreto de saber mais me coagiu a mandar mensagem à um amigo e, no instante em que ele respondia, em tom jocoso, “vá falar com ele”, outro fato ocorreu. Parando o ônibus em mais uma cidade, entrou uma mulher, sentou-se no banco à frente dele. Não o olhou, não cumprimentou, desconheceu. Cinco minutos depois, um bilhete é passado, dela para ele, de forma furtiva. Tentei ler o que ele lia. Míope sem óculos que estava, depois de alguns segundos, tive que desistir. O que seria esse bilhete? O meu amigo, por óbvio, que já não me levava a sério, no seu imaginário apenas figurou a possibilidade de ser um casal que combinava de ir ao motel, sair junto ou outra coisa. Ideia que foi reforçada quando reparei, melhor olhando, que aquela mão também era portadora de uma aliança.
Seria algo tão simples? Quem sairia com um nazista senão alguém que compactuasse com as ideias que ele carrega na mão? Não sei dizer ao certo, meu imaginário – povoado de histórias de Agatha Christie lidas na infância – se perguntou se ele não seria um matador de aluguel. Parece impossível e estúpido falar sobre, escrever sobre, mas acontece, e mais perto do que imaginamos. Poderia ser, poderia ser um acerto de morte, de serviço, qualquer coisa que apontasse justificativa.
Mais dez minutos, o homem saiu do seu assento para figurar ao lado da mulher, conversam um pouco e, logo, desceram juntos, com pouco disfarce de que se conheciam. Todavia não pareciam namorados, não eram carinhosos, não estavam corporalmente próximos demais... De certo que era apenas meu desejo indiscreto de saber, sobretudo sobre tudo que vejo e ouço. Parte de mim quis descer junto, segui-los, como uma louca, descobrir quem eram o que iriam fazer. Loucura total, que parte minha é essa capaz de tamanho contrassenso? 
A razão venceu o ímpeto, fiquei – eu. Me deixaram só no ônibus, não de fato, mas me senti só, sem ninguém que pudesse perscrutar, sem o amigo que já não me levava muito a sério, buscando a leveza para a cena. A única seriedade foi: escreva sua história sobre isso. Mas não queria uma história de Agatha Christie e nem poderia – sou apenas artesã das palavras.
Resolvi atender a sugestão – e cá estou – vez que tudo isso me fez perceber que não era um homem que eu via, era uma mão personificada, um sujeito objetificado – sobre o qual eu estava tecendo as mais variadas conjecturas sem nem sequer saber nada, nada mesmo, sobre ele. Muito menos sobre a mulher! O máximo que sei são suas características físicas e nada mais.... Provável, repito, que meu amigo estivesse certo, eles iriam namorar e nada mais. Nazistas também amam, e sentem dor, e comem e vão ao trabalho e, talvez, às vezes, escrevem sobre seus cotidianos.
Saber disso não resolve a questão ou diminui o assombro. O que fazer com o outro?
 E se ele tivesse sentado ao meu lado?
Eu, incomodada, teria levantado para sentar-me em outro lugar (a não ser que o assombro e o medo me paralisassem)?
Atitude correta? Não seria o mesmo que eles, em regra, fazem, e que critico tanto? Segregação? Como agir diante de alguém assim? O que significa no aqui, na região onde eu moro, um nazista à plena luz do dia, sem medo de se mostrar? O que alguém assim é capaz de fazer, o que alguém assim desperta dentro de nós?
Me pergunto e mantenho em mente a assertiva de Deleuze, é preciso vigiar o fascista em nós. Assim como os matadores de aluguel, os fascistas então mais perto do que imaginamos. Às vezes, eles se sentam próximo a você no ônibus, outras vezes, é só examinar o espelho.

On the road, 30 de maio de 2019.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Crônicas de uma trabalhadora pendular

Eu que sempre quis ser arquiteta das palavras, hoje me contento em ser pequena artesã, sem grandes ambições e luxúrias. É que não sou diplomata nem nunca o serei, sou apenas uma trabalhadora, do interior do Paraná que há pouco iniciou rotina nova. Sendo este o fato, que se configura como uma misto de sonho e realidade, ser aquilo que quis ser, professora, ele veio a acontecer de forma abrupta e neste cenário horrendo para tal profissão.
Com o propósito de adoçar vivências e a própria alma que caleja sob o embalo de um ônibus e das paisagens paranaenses, inicio igualmente um novo tópico de escrita, de pequena artesã: as crônicas de uma trabalhadora pendular.
Um mês de trabalho, trabalho novo, professora, em outra cidade, já computo quarenta horas mensais dentro dos princesas dos campos. Metade do mês vivido aqui, outro acolá, metade dos planos remanejados, metade do sonho ocorrido - ainda não exaurido. Um conhecido, dentro de um misto de acalanto e brincadeira buscou lembrar de outro conhecido, que viaja semanalmente dezoito horas, cruzando parte desse Brasil de deuses e anti-heróis. O acalanto serviu, por hora, embora seja o ocaso (e quem sabe o acaso) de sempre lembrarmos de fazer esse ato aqui tentado de adoçar vivências, sempre tem alguém pior, um sofrimento mais terrível, uma rotina mais desgastante. Não que isso diminua o peso das horas passadas em um ônibus e o cansaço de dormir poucas horas por dia. A iminência do desemprego, que atinge mais de 10% de nós, nos faz aceitar qualquer negócio (e olhe que do meu não posso reclamar não, salário bão, lugar bão, e fazendo o que se gosta?, vixi, até paro de falar em amarguices) - é o nosso modo de produção, "mais justo que os anteriores".
Confesso que desvio da teleologia, impossível passar desapercebida por isso, valia mais que uma nota.
O que venho de fato, contar, humildemente aqui, é que passar quarenta horas mensais em princesa dos campos - a companhia mesmo, e não minha cidade natal, tão querida e odiada - é me permitir conhecer mais essa gente que circula por entre cerca de 10 cidades diferentes: Ponta Grossa, Imbituva, Irati, Rebouças, Céu Azul, Mallet, Paulo Freitas, Paula Frontin, União da Vitória!(?) Se esqueci de alguma (ou errei o nome) é que são quarenta horas passadas entre leituras, preparo de aulas, cochilos e eventuais conversas com desconhecidos.
Gente que entra e sai o tempo todo, com mais de quinze paradas ao longo de cada viagem, gente com um cheiro específico, um sotaque específico, um jeito de ser específico, majoritariamente adultos com mais de 40 anos, oriundos do meio rural. Entre as pequenas conversas que pego ouço falar que ter duas granjas não vale a pena - seja pelo gasto com energia elétrica, seja pela falta de tempo que isso gera. Em outro momento ouvi duas mulheres discutindo sobre a mortadela, supostamente feita com carne das entranhas de cavalos. Semana passada conversei com um senhor, que nunca fez mais que o ensino médio, que me falou aquilo que um filósofo italiano havia acabado de me falar em livro: nosso processo de socialização vai à bancarrota, na medida em que crianças conversam mais com dispositivos eletrônicos do que com humanos - ou como o italiano de forma chique dizia "hoje uma criança aprende mais palavras por meio de máquinas do que pela própria mãe". As mãos desse senhor eram calejadas, ele estava queimado de sol, tinha as roupas sujas.
A cada nova viagem, meu coração aumenta e diminui. Meu cansaço aumenta e diminui. Fico curiosa para conhecer essa gente - embora minha pequena misantropia (que em determinadas horas aparece) sempre inconveniente me barra. Mas isso foi apenas um mês e este é um pequeno relato - de pequena artesã; há tanto a se dizer e há tanto a se calar e há tanto o que adoçar (menos o café, nunca o café!)!



quarta-feira, 18 de abril de 2018

Amar despedidamente

Amo-te, assim, distante, pequenina
como se a despedida
fosse a primeira e a última
representante de uma ars aeterna
de amar.

E de tanto amar-te 
assim, longínqua
como uma Hilda perdida
como se te perdesse
sempre 
te encontro.

Nos jornais, nas estações, nos sorrisos e noutras bocas,
te encontro em todas as composições. 

Você não foi 
meu primeiro amor
mas é como se tivesse sido,
não será, tampouco, meu último amor
mas é como se sempre o fosse.

Despedida como essência de amar
e nela nos liberto e nela nos ato, e nela despedidamente te amarei.

{20 de março de 2018}

Amar-mulher

É... meu coração é drummondiano, mesmo que eu não seja tão gauche - sou mulher, sou o negro do mundo, sou reclinável -, mesmo que meu coração não seja tão vasto. Coração pequenino, mas tão profundo que não dá pé.
É que acredito: o amor nos salva, em silêncio. Tenho amor zeloso de mãe, de quem já tem os filhos crescidos. Acompanho com olhar distante as minhas queridas. Por dentro, aquela vontade de colocar no colo, como se assim pudesse protege-las das dores do mundo.
Se o olhar manso de Drummond pousasse no meu, entenderia que bicho-mulher ama obscuro. Ama em cima de uma corda florida, única divisão entre eu e nós. Entenderia eu não amar a humanidade, amor antropocêntrico, abstrato inexistente. É que quem ocupa meu coração já é um mundo inteiro.
Meu amor, que é mãe, irmã e amiga. Ele não ama com a cabeça - instrumento frágil -, ama sim é com as entranhas. Ama com as dores, com as perdas, com os defeitos. Sentimento que se exerce do lado avesso. Sem recusa e vem viseira.
 - Drummond, trata-se de um amor selvagem, de que sabe o poder de uma fogueira e a usa para exorcizar o mundo-homem, e as suas máquinas, e os seus falos, seus sortilégios, suas mortes e os seus barulhos. Desde sempre eu fui minhas queridas e tantas outras. São os nossos ombros que suportam o seu mundo. Drummond, você me entende?

{rascunho de junho de 2017}

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Astigmata

Somos líquidos,        
não como Bauman descreve
- mas o polonês tinha razão, muito senso.

Falo apenas
não temos substância
(estamos líquidos, então?)
Somos feitos de silêncio
e nossa matéria que é o nada,
grita seu próprio caos
em nossos recônditos.

E, por isso, nunca toquei sua alma
essa matéria líquida
foge
enquanto prolongo-me
escorre, se desvanece
muda.
E eu já não sei mais de ti.

Apenas ouço seus gritos
e não confio na razão
- matéria feita de concreto.
É firme, mas rasga a pele.

Com meu silêncio de palavras
vou desconfiando do futuro.
Com uma verborragia fantástica,
com imensos objetos para as palavras-coisas
vou fugindo desse presente
que é ser.

Atúrdita, enfim,
distante e muda, prolongo-me mais
e no passado
só enxergo, astigmaticamente,
o desalentamento da infância.

Estamos todos

nossos três atos
ao mesmo tempo.

{21.01.2017}

sábado, 21 de outubro de 2017

Os retumbantes


Na praça relativamente cheia, sentada, para ocupar o tempo ela fuma. Santos Andrade: de um lado um prédio histórico imponente, é a Universidade, de outro vendedores ambulantes, transeuntes que passam com pressa, no movimento-formiga do dia a dia. Ela senta e olha pra dentro. O excesso de informações sonoras e visuais impede. De repente escuta: - vô pedi cigarro praquela moça! Virou seu rosto, sentada, muda, fumando e escutando. 
- Moça vim pedir um cigarro procê. Ele se ajoelha, como se pedisse perdão e não cigarro, ela diz que não precisa, ele diz - Precisa sim, que é pra nois mostra quem a gente é. Ela dá o cigarro, pergunta se tem isqueiro, mas o cigarro é pra depois. Ele levante, sujo, maltrapilho, com grandes olhos esbugalhados e o cabelo amassado embaixo de um boné, mas isso, dela, nem chama atenção. Ela olha sem olhar pro volume extra na calça, ele tá com uma ereção. E ela sentada ali, na frente dele, querendo olhar pra dentro e olhando e escutando aquilo As pessoas em seu movimento-formiga passam, olham com desconfiança pra ele, voltam o olhar pra ela, mas seguem em seu movimento-formiga. Ninguém se importa?
Ele continua falando, descontínuo, viciado, usa alguma coisa, provavelmente crack, mas ela pensa, os dentes não estão tão ruins, se fosse crack, estariam piores e ela não consegue olhar os olhos esbugalhados e ele, todo descontínuo conta sua história pra ela, que não é que não queira ouvir, só queria ocupar o tempo, já disse, olhando pra dentro. Ajoelhado pra pedir perdão, pedir cigarro, por ser viciado, até achou uma ponta de cigarro de maconha no chão e fala que aquilo é do cão, do diabo, fala que o homem é bicho, diz que não existe esperança, só vingança, como se falasse no juízo final. Do pouco contínuo que disse: teve a prima morta por dívida do vício, seus olhos esbugalhados soltavam mais ainda da órbita ao dizer isso, era de menor, não tinha nada haver com aquilo. E ele ia se vingar. Ela lembra de Faroeste Cabloco, olha pra boca dele pra não olha no olho, mas a boca também parece inflamada, e a saliva começa a juntar nos cantos: raiva falada. Ele ia se vingar, porque a vingança é o que existe. E falou de um traficante que teve as pernas e os braços cortados por dois usuários que tinham dívidas. Era vingança desse tipo, porque morte matada se paga com morte matada.
Não para de falar e ela não para de ficar muda. Seu cigarro acaba e ela quer sair dalí, permanece imóvel, com medo do bicho-homem que não quis ser formiga. Ele também parecia estátua, só sua boca mexia, e a saliva que acumulava. As vezes ele se balançava, balançava os braços e continuava olhando fixo pra ela, com os olhos enormes e inflamados. Ela pensa que não pode se mexer, pensa se o medo que sente é real ou se ele só precisa contar sua história, que não tem ninguém pra ouvir. Ela ouve. Ouve e lembra do medo do homem, na figura de tanto homem que conheceu, medo do homem-pai, do homem-amante, do homem-que-fingia-ser-amigo. O medo dela não era dele. Era do homem-bicho. Do homem que  tem só abismo no olho, só raiva nos dentes e aquele dalí provavelmente tinha o estomago também vazio e a alma, se alma ainda tinha, carente de amor. Fica pensando será que algo nela atraiu ele? E se ela fosse homem, teria menos medo? E se ele fosse mulher? Teria mesmo medo? Será que ele teria a mesma raiva? Será que amanhã ainda estará vivo?
E a raiva no lugar da fala e a postura que pede perdão não combinam. Ele sabe que é desgraçado, na cabeça dele já fez mal e não merece atenção, mas alí ele tento e teve, seja por medo ou por falta de opção de quem tinha que matar o tempo mas teve mesmo o tempo congelado. 
No meio da fala corte abrupto - então tá bom moça, vo lá, apontando pro lado direito e saí em linha reta, passo forte e olho no vazio. Quem sabe olhando pra dentro. Ela vira a cabeça, segue os passos dele, levanta e tem que ir pra mesma direção que ele. Anda devagar que ele anda rápido. Ambos vão embora e ela olha pra dentro e só vê o olho dele, abismo dentro de abismo.